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26. Antologias. Uma Antologia da Poesia Experimental Portuguesa.

Quando falamos em jornal, estamos lidando com o efêmero (“o que tem a duração de 1 dia” – heméra, em grego= dia), pois jornal quer dizer diário e não à toa o lugar onde se guardam, colecionam jornais, recortes (e até periódicos) é a hemeroteca. Já a revista fica entre o efêmero do jornal e o perene do livro, e cuida-se de reunir em livro o que foi publicado em jornais e revistas, veículos que chegam rapidamente aos leitores e são imediatamente desprezados – “nada mais velho que o jornal de ontem”. Uma antologia que se assume antologia em volume, entra, já, na categoria livro, aspirando à perenidade, ou mesmo, à eternidade implícita no veículo. Já não entra no jogo a questão impossível (para publicações, como as que estou a tratar) da periodicidade e, embora continue com a parte mais difícil, que é a da seleção, vivencia as diferenças: numa revista ou suposta revista, pessoas são escolhidas, enquanto que, na antologia, os poemas-em-si, têm peso maior. Agora, se a antologia mexe com viventes, as dificuldades até aumentam, pois, se mortos não reagem, viventes o fazem. Exposições coletivas são como antologias: exigem uma curadoria, implicam seleção. E sempre há a exclusão de alguns, por um motivo ou outro. Portanto, critérios têm de ser consistentes e devem ser expostos com clareza.

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Toda antologia peca (quase toda) pelo excesso, sendo que o antologista teme ter-se esquecido de algum valor maior – daí é que acaba por incluir peças que lhe trarão, cedo ou tarde, arrependimento e isto ocorre principalmente quando se trata de antologizar poetas da Contemporaneidade. A pesquisa para a elaboração de antologias nunca é feita satisfatoriamente e, portanto, essas devem ser constantemente reformuladas, modificadas, ao menos, com supressões e acréscimos, trocas de pecas constantes etc. Por outro lado, há que se ter coragem intelectual, o suficiente, para podar, assumir escolhas etc etc etc. O critério da qualidade é o principal (deve ser), pois, se se vai escolher o melhor, a nata (antologia= flores escolhidas), deverá entrar, em primeiro lugar o critério do qualitativo e, mesmo assim, há dificuldades – por exemplo: como colocar, numa antologia lusa da Lírica apenas 3 sonetos de Camões? Ou 2 poemas de Fernando Pessoa? Eis a questão. Daí, entram critérios secundários, como: produção dos anos tais, ou poemas publicados em vida do poeta, ou poemas que falam de amor, e aí vai. Em sua antologia que encerra o livro Apresentação da poesia brasileira, Manuel Bandeira exclui Oswald de Andrade (já havia dito, no texto, propriamente, da poesia de Oswald de Andrade que era constituída por “versos de um romancista em férias”) e, no entanto, coloca, ali, versos de poetastros, cuja ruindade, podendo ser percebida à época, o tempo (o melhor dos juízes) escancarou, com todas as letras, tendo sido legados ao esquecimento – e olha que Bandeira foi um grande poeta: sua obra é uma espécie de síntese da Lírica Ocidental. Na Antologia da poesia brasileira moderna (Lisboa: 1960), organizada por Alberto da Costa e Silva, em 1º lugar, pede-se desculpas pelas exclusões, quando deveria ser o contrário, pois sobram nomes e poemas de poetas que não vingaram e, portanto, desapareceram. Penso que, além do critério da qualidade, deverá haver outras especificações plausíveis e deixar claro Digo mais uma vez) que a antologia estará aberta a reformulações etc.

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A antologia que ora elaboro tem a intenção de levar aos brasileiros uma significativa amostragem da Poesia Experimental portuguesa, pois, somente os diretamente interessados têm dela conhecimento no Brasil, que conta, inclusive, com alguns estudiosos do assunto e, considere-se, muitas publicações lusas chegam até lá, além de livros de poetas portugueses que são publicados no Brasil, como alguns de Ernesto Manuel de Melo e Castro e de Fernando Aguiar. De qualquer modo, falta a divulgação, falha esta que acomete os próprios brasileiros. Em Portugal, essa poesia, malgrado algumas dificuldades no campo editorial, tem sido divulgada por meio de antologias e de catálogos de exposições – por falar em meios impressos – sem contar as inúmeras exposições que têm tido lugar no País e fora, de algumas décadas para cá (o que mostra a vocação internacionalista dessa poesia). Então, o nosso problema era e é: “Como organizar uma antologia da poesia contemporânea portuguesa impressa, a que valoriza a visualidade, para um público brasileiro?” É claro que o mérito maior será o da qualidade das peças constantes e isto não será problema, pois o material é farto de elevado nível. Mas temos que considerar peças que por si sós tiveram importância no desenvolvimento subsequente da Poesia Experimental portuguesa, mesmo que os autores não tenham sido praticantes contumazes desse tipo de poesia. Aqueles que, embora continuem a produzir, apresentam trabalho consistente ao longo de décadas. Aqueles que, embora tardios, estão a construir obra forte, digna de nota, e tentar reunir um máximo de 50 poemas que, certamente poderão ser até menos (ou mais) no futuro, pois toda antologia é passível de ser reformulada, mesmo as que trazem peças milenares (se constam mais pela antiguidade do que pelo que tenham de qualidade). Uma antologia é uma antologia, não “a” antologia e sua função, além de informar, deverá ser a de estimular para a procura de outros poemas. Reunirei, portanto, 50 peças-poemas, com o objetivo de que o apreciador brasileiro tenha uma 1ª ideia do que vem a ser a Poesia Experimental portuguesa que, embora não tendo se constituído em movimento organizado, é mais concentrada do que o que se observa no Brasil, país de dimensões continentais, com mais de 200 milhões de habitantes, onde as visualidades pululam, pipocam, dispersivamente. Que essa antologia venha a anunciar uma exposição a ser realizada em local ainda não-definido, na cidade de São Paulo, quem sabe na Casa das Rosas, Espaço de Poesia Haroldo de Campos.

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Eu fazedor de antologias vou basear-me nas que fiz de Poesia, pois já selecionei Pinturas, Esculturas, Obras Arquitetônicas, Peças Musicais. Vivemos a selecionar. Afora o mais informal em sala de aula, com pré-adolescentes e adolescentes, durante mais de duas décadas, elaborei 8 antologias que eram impressas e distribuídas no final do ano e ainda uma, acoplada à minha Dissertação de Mestrado, e que teve edição (pela Nomuque Edições) em separata muito bem cuidada – um trabalho artesanal feito totalmente em serigrafia e com dobraduras, e foram cerca de 100 exemplares distribuídos principalmente a amigos e aficionados, além dos exemplares que acompanharam o volume da Dissertação: Não muito mas muito da poesia em língua portuguesa (de Sá de Miranda a Paulo Miranda). Então, iniciava com a melopeia/logopeia do Mestre luso e terminava com o soneto-fita-métrica do então jovem poeta brasileiro – eram apenas 22 peças de portugueses e brasileiros sendo que, dos portugueses, concluímos com Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa ele-mesmo. Constituiu-se num ato de coragem. Organizar antologias mínimas causa sofrimento, mas apresenta compensações – é preciso, além da coragem, o empenho). Em sua maioria, as referidas antologias foram elaboradas para chegar a um público de não-iniciados, abraçando a noção de Paideuma (um mínimo de peças com um máximo de informação estética, visando a um público de não-iniciados ou de iniciantes, como entendeu Ezra Pound, que colocou a seleção rigorosa como uma das funções da crítica, a principal) e na tentativa de realizar um projeto que era, em verdade e em parte, de Haroldo de Campos, de elaborar uma “antologia da poesia brasileira de invenção”, para a qual colocou apenas algumas diretrizes e sugestões (Pound sempre presente, assim como Jakobson). Também organizei várias exposições, ou seja, fiz curadorias que diziam respeito especificamente à Poesia Visual (não só, mas principalmente na cidade de São Paulo e congregando poetas brasileiros), sendo que a memória de algumas acabou por se perder. Penso ser melhor a antologia que peça por menos do que a que faz sobrar, pois, o objetivo é esse mesmo: o de motivar novas buscas por parte do público leitor.

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Reiterando: As dificuldades em se organizar uma antologia de poemas são imensas e sem remédio. E como diz o ditado: “Se não tem remédio, remediado está!” E persistimos em reunir poemas, sendo que o exame da totalidade seria o mais conveniente, mas isto é tarefa para especialistas e para toda uma vida. Antologias cumprem o seu papel de iniciar alguém em determinado território ou autor ou autores de uma certa poesia, tradição etc. De qualquer modo, os critérios têm de ser claros e o antologista deve ter a consciência de que está fazendo o melhor, dentro do que é possível. E saber que ajustes serão necessários num futuro, que poderá ser próximo: cortes, substituições, acréscimos, correções. No caso específico da Poesia Visual/Experimental portuguesa as dificuldades não são menores, não apenas pelo facto de o processo estar em curso, mas porque já existem excelentes trabalhos de seleção e juntada de poemas dessa estirpe, que se auto-nomeiam antologias e as antologias que são catálogos de exposições, belos catálogos. Vamos, logo mais, apresentar a nossa que acabará por se desdobrar em luso-e-brasileira.

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

25. Os Contextos Brasileiro e Luso à Época das Explosões Experimentais.

O Brasil, após o fim da ditadura do Estado Novo (1937-1945), sob o comando de Getúlio Vargas, gradativamente se encaminhou para um regime democrático, permeado de crises políticas, sendo as mais graves: a que culmina com o suicídio de Vargas, que havia sido eleito Presidente e a que se inicia com a renúncia de Jânio Quadros e culmina com o Golpe de 1964, que põe termo ao período. O momento pós-Vargas é caracterizado por uma crise, que terá fim com a eleição e posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK que, superando os primeiros momentos nada pacíficos de seu governo, coloca o País num clima de euforia, sendo que importantes acontecimentos no âmbito da cultura já vinham ocorrendo desde os anos 1940: da criação do MASP (1947) aos MAMs (São Paulo 1948 e Rio de Janeiro 1949), ao TBC, Cia. Cinematográfica Vera Cruz, à Bienal de São Paulo (sendo a primeira, em 1951), a entrada em grande estilo e de facto da Arte de Linha Construtiva no Brasil (já em fins dos anos ’40, mas, principalmente, nos anos ’50). A Arquitetura Moderna, que fora introduzida em fins dos anos ’20, ganha força nos 30, continuando a sua escalada nos ’40 e triunfando nos ’50 de mãos dadas com o urbanismo, 2ª metade, com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer e o projeto e construção da Nova Capital: Brasília. Concretismo nas Artes Plásticas, com os Grupos Ruptura (1952) e Frente (1954) e, mais para o final da década, o Neoconcretismo. O marasmo e conservadorismo poético da Geração de 45 têm um “basta” com o nascimento da Poesia Concreta, Grupo Noigandres, 1ª movimento artístico internacional com a participação de brasileiros em sua criação, movimento experimental-inventivo, por excelência, em sua fase ortodoxa ou heroica. Exposição Nacional de Arte Concreta, com a participação dos poetas: 1956 São Paulo-1957 Rio de Janeiro. Tempo em que nasce a Bossa Nova, no Rio de Janeiro, e já começa o seu florescimento sendo que, na década seguinte, acaba por ganhar o Mundo. Em 1958 o Brasil, que já era o “país do futebol”, conquista a sua primeira Copa, brilhantemente, na Suécia. O país, vive, então uma fase de verdadeira democracia (apesar dos grandes problemas de ordem social, dos quais não se livrou até hoje), e se aposta num desenvolvimentismo, que acabou por deixar como herança todas as brechas que dariam guarida a crises, que explodiriam na década seguinte, em seus inícios: da Renúncia de Jânio Quadros, à casuística instalação do Parlamentarismo (enquanto que o Vice eleito estava ausente do País), à derrubada do Parlamentarismo por meio de um Plebiscito, à volta do Presidencialismo e as campanhas populistas que mexeram com os temores da burguesia, classe média e militares, o que culminou com o Golpe de 1964, instituindo os governos militares, com um autoritarismo que foi num crescendo, recrudesceu e demorou a arrefecer – isto já nos anos 1980, em que eleições diretas começam a ser restabelecidas (menos para Presidente, que terá de esperar mais) até que civis vieram a ocupar o cargo maior do País (1985) e a nova Constituição (1988), com garantias das liberdades etc. Mesmo sob o tacão da ditadura militar, na 2ª metade dos anos ’60 floresceu a Tropicália ou Tropicalismo, em São Paulo, movimento musical e comportamental, propondo uma diferente leitura do Brasil, mas que acabou por ser vítima do Regime, porém, mudou tudo na MPB, ultrapassando suas fronteiras. Nos anos 1970, com a 2ª geração de poetas experimentais (abraçada à 1ª), que atuaram mormente junto às revistas, que proliferaram no País, a Poesia floresce e, dentro já de uma tradição do rigor e intersemioticidade, estende-se à atualidade. Então, diferentemente do Brasil, em Portugal o Experimentalismo poético se inicia e se desenvolve sob um regime autoritário, regime este que cede apenas em 1974 – daí, depois de décadas, o País experimentará a Democracia.

Já em suas origens, o autoritarismo luso de António de Oliveira Salazar (1889-1970) encontrou entre seus opositores, ninguém menos que Fernando Pessoa (1888-1935) que, já próximo do desaparecimento e que, dando vazão ao seu “nacionalismo místico”, havia publicado (1934) o seu Mensagem, chega a compor peças ditadas pela conjuntura, que reproduzimos a seguir (Fernando Pessoa. Mensagem e outros poemas sobre Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 127, 128 e 129-130):

António de Oliveira Salazar.

Três nomes em sequência regular…

António é António.

Oliveira é uma árvore.

Salazar é só apelido.

Até aí está bem.

O que não faz sentido

É o sentido que tudo isto tem.

(29-3-1935)

Este senhor Salazar

É feito de sal e azar.

Se um dia chove,

A água dissolve

O sal,

E sob o céu

Fica só o azar, é natural.

 

Oh, c’os diabos!

Parece que já choveu…

(29-3-1935)

Coitadinho

Do tiraninho!

Não bebe vinho,

Nem sequer sozinho…

 

Bebe a verdade

E a liberdade,

E com tal agrado

Que já começam

A escassear no mercado.

 

Coitadinho

Do tiraninho!

O meu vizinho

Está na Guiné,

E o meu padrinho

No Limoeiro

Aqui ao pé,

E ninguém sabe porquê.

 

Mas, enfim, é

Certo e certeiro

Que isto consola

E nos dá fé:

Que o coitadinho

Do tiraninho

Não bebe vinho,

Nem até

Café.

(29-3-1935)

Salazar (e o “Estado Novo”) dominou o País, de 1932 a 1968, seguido por outro “mão de ferro”, Marcelo Caetano, derrubado em 1974, com o 25 de Abril. E nesses mesmos anos ’70, meados, libertações das Colônias portuguesas de África, depois de guerras de independência. Valerá a pena ler a entrevista-depoimento concedida por E. M. de Melo e Castro a Raquel Monteiro, no Museu de Serralves, Porto, em 2006 – disponível em: http://www.po-ex.net – em que o contexto político e literário em Portugal, nos anos 50 e 60 é brilhantemente colocado. Do mesmo poeta-experimentador, entrevista concedida a Ana Cristina Joaquim, Revista Desassossego 9, junho de 2013 (existe em PDF). Melo e Castro, com a sua exuberância verbal, conhecimento-vivência e clareza, não sonega informação. Daí ser desnecessário que eu o parafraseie. O mesmo, com textos de divulgação (Rádio) de Ana Hatherly, abordando os anos 1960: “A década prodigiosa I, II, III, IV e V” (Ana Hatherly. Obrigatório não ver e outros textos de comunicação social, anos 1960-1980. Lisboa: Quimera, 2009, p. 92-102.) A entrada de Portugal no rol das Democracias, depois de décadas, trouxe consequências boas, mas também dificuldades para um país que, durante séculos esteve em posse de um Império Colonial que, apesar dos muitos percalços, manteve-se, até o seu desmantelar completo, nos anos 1970. Na Democracia Lusa, tem-se observado a atuação de forças contrárias, não propriamente antagônicas, do que ainda se chama de esquerda (os progressistas) e direita (os conservadores/entreguistas) sem grande poder de ação para um país que optou por fazer parte da Comunidade Europeia, para não ficar à margem com relação ao restante do Continente Europeu. Mas vive-se uma democracia num país que muito tem a oferecer e que se transforma para melhor – para os de fora, que o observam. A Poesia Experimental lusa antecipou-se à grande abertura, desmantelando o discurso do autoritarismo salazarista (Melo e Castro) e abrindo o País para o Mundo.

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

24. Nome, Classificação da Poesia: Concreta, Visual/Experimental.

Dar nome é coisa primordial para nós (entre nós e o mundo: uma espessa camada de signos), classificar é o passo seguinte. A ânsia de classificação é coisa que persegue os Humanos, principalmente os doutos que, classificando, etiquetando, engavetando, acabam por ter a posse da coisa (ou a ilusão de), o domínio sobre a coisa e, tudo o que com ela se relacione tem de caber naquela classificação. Algumas classificações até chegam a ser úteis, desde que sua operacionalidade as justifique. A Semiótica peirceana nos ensina que nenhuma leitura de signos ou de complexos sígnicos é definitiva, por melhor que seja – o Interpretante Final tem como lugar o Futuro, sempre. Nomes têm sido dados, pelo bem (por autodenominação ou não) e pelo mal (pejorativamente ou não) e acabam por se consagrar, tais como Impressionismo, Futurismo, Fauvismo, Cubismo, Imagismo, Orfismo, Simultaneísmo, Surrealismo etc. Como sabemos, o nome Poesia Concreta foi dado por Augusto de Campos (já que existiam Arte Concreta e Música Concreta – é assim que o poeta o justifica – e independentemente de um sueco nascido em São Paulo ter falado pouco antes em poesia concreta, coisa que não vingou) e aceito por Eugen Gomringer (co-criador), em contacto com Décio Pignatari e o Grupo Noigandres. Sendo uma poesia de altíssimo repertório, a penetração junto a um público maior de não-especialistas/não-aficionados da Poesia foi e é difícil: 1º pelo boicote empreendido pela crítica do establishment, e 2º pelas próprias dificuldades apresentadas por uma poesia que não fez concessões sendo que, via de regra, a informação chega de forma diluída antes de chegar ela-mesma ou chega de forma indireta ao grande público. No caso da Poesia Concreta, no Brasil, até pessoas de um repertório mais elevado – mais lendo os detratores do que procurando a própria produção – tiveram uma noção errada das coisas, limitando a Poesia Concreta àquela produzida nos anos 1950 (importantíssima, por sinal), fase dita Ortodoxa ou Heroica, em que os poemas se caracterizavam pela parcimônia verbal, pela espacialização rigorosa, deixando sentir-se a brancura da página, pela tentativa de uniformização tipomórfica (com o tipo não-serifado futura) e pela imposição de uma forma geométrica. Acontece que as coisas evoluíram, sem perda do rigor, muito rapidamente, nos 60 e 70, mesmo em tempo em que os poetas concretistas brasileiros, embora cultivando estreitos laços de amizade (não sem conflitos esporádicos e conversáveis), já não formavam propriamente um grupo. Nesse universo dos anos 1960, além do chamado “salto participante” (Invenção 2, 1962), surgiram projetos individuais e em colaboração, mas com peças de autoria sempre individual, como as Galáxias, de Haroldo de Campos, os pop-cretos de Augusto de Campos + Waldemar Cordeiro, os poemas-código ou poemas semióticos de Décio Pignatari + Luís Ângelo Pinto, que tiveram seguidores. Wlademir Dias-Pino que, no texto “Nova linguagem. Nova Poesia” é apontado como precursor dos poemas semióticos (poemas código), por Décio Pignatari e Luís Ângelo Pinto, acaba por se tornar tributário daquela proposta quando, na 2ª metade dos anos ’60 cria o Poema-Processo (que frutificará mormente em Estados do Nordeste brasileiro), tentativa de radicalização do não-verbal em Poesia – os poemas semióticos portavam uma “chave léxica” direcionadora de leitura. Além das discordâncias e atritos que, desde a 1ª metade dos anos 1960, houve com Mário Chamie (1933-2011), que teve participação na página “Invenção”, do Correio Paulistano, mas acabou por se tornar inimigo figadal dos poetas concretos, criador da Poesia Práxis, houve uma indisposição Concretismo/Poema-Processo, sendo este anti-paulista ferrenho. Em entrevista concedida a Antonio Risério (publicada na revista Código 1. Salvador: Erthos Albino de Souza, 1974), Haroldo de Campos chegou a afirmar; “o poema-processo é a doença infantil da poesia concreta”. Coloca-se, geralmente, a denominação Poesia Visual, como algo geral, uma espécie de saco-de-gatos, onde cabe tudo – então, a Poesia Concreta seria uma modalidade de poesia visual, o que não conteria alguma precisão, pois, abraçando um termo cunhado por James Joyce, os concretistas se propunham a fazer e fizeram uma poesia vebivocovisual. Apesar de consagrado, inclusive internacionalmente, o termo “poesia visual” é insuficiente, não somente por não dar conta do fenômeno como por levar a equívocos. Quando os concretistas do Grupo Noigandres entram em desacordo com Apollinaire e seus caligramas, é pelo fato daquelas facturas serem figurativas e em nada diferirem dos carmina figurata, praticados há mais de 2 milênios e, no mais, estava-se na época dos radicalismos exacerbados: Haroldo de Campos havia escrito (1957) um texto que trouxe problemas, principalmente com Ferreira Gullar: “Da fenomenologia da composição à matemática da composição”, cuja ideia principal era a de que deveria existir uma estrutura que antecedesse a feitura do poema. A denominação “Poesia Concreta” não apenas continuou a ser utilizada pelos componentes do Grupo Noigandres, como sua abrangência, por ação de seus principais teóricos, chegou a ser ampliada. Haroldo de Campos, em época tardia, em que inclusive havia dado por encerrado o seu projeto de prosa experimental Galáxias (1963/4-1976), muito embora acatasse a ideia de que toda poesia digna do nome é concreta, à medida que coloca em evidência a materialidade dos signos, cansou-se de ser chamado “concretista” e, em várias de suas conferências chegou a dizer: “se amanhã eu vier a fazer um soneto, ainda dirão: ‘o poeta concretista Haroldo de Campos acaba de publicar um soneto’”. Esse fardo, Augusto de Campos carrega até hoje e com grandeza, pois, além do trabalho crítico que continua a desenvolver + a tradução-arte que pratica diariamente, produz uma poesia com forte carga de visualidade o que o liga, indissoluvelmente, embora com anos-luz de distância, à Poesia Concreta dos primeiros tempos, desde a sua célebre série de poemas coloridos Poetamenos (1953).

M. de Melo e Castro apresenta no Suplemento Especial “Poesia Experimental” do Jornal do Fundão uma classificação por demais abrangente, envolvendo todo o universo da poesia experimental mundial, que é reapresentada em A Proposição 2.01: Poesia Experimental, com algumas alterações – o primeiro, publicado em 24 de janeiro de 1965 e o segundo em abril do mesmo ano (Lisboa: Editora Ulisseia). Assim como os nomes de movimentos podem ser dados pelos próprios criadores, todo um trabalho de organização do pensamento, por escrito, e com fins didáticos pode ser desenvolvido e Melo e Castro é mestre nesse tipo de coisa e ninguém melhor que ele para discorrer sobre, ele que, além do alto repertório e de ser criador, possui essa capacidade de expor ideias, como poucos. Assim também Ana Hatherly, embora mais didática. Ambos fizeram muita metalinguagem constituindo-se, em Portugal, não nos únicos, mas nos maiores críticos (crítica= discernimento) das hostes experimentais. Os melhores críticos são aqueles que contribuem para a melhoria da arte que criticam – é o caso deles. A seguir vêm os que focalizam o melhor que se produz – é o caso deles e as afirmações acerca dos críticos foi feita por Ezra Pound. Os grandes críticos (além de serem capazes de grandes e esclarecedoras análises) são os que revelam à Sociedade novos valores e por isto mesmo, pelo menos num certo período, fazem crítica militante. É o caso dos dois. Voltemos à questão terminológica:

Melo e Castro, em e-mail de 11.09.2015 […] Penso que fui o primeiro a usar os seguintes termos :  Videopoema, videopoesia, infopoesia , infopoema, mas Visopoema é de autoria de António Aragão no 1º número da revista  Poesia Experimental [organizada por António Aragão e Herberto Helder], talvez influenciado pelo termo Poesia Visiva usado pelos italianos, pois ele viveu em Roma alguns anos estudando restauro de obras de arte e convivendo com poetas visivos. Segundo me parece é também  italiano o sema  POESIA VISUAL hoje vulgarmente usado e abusado por muita gente…

 Ao final do pequeno e importante volume A Proposição 2.01: Poesia Experimental, Melo e Castro traz uma antologia mais que interessante de poesia que valoriza a visualidade e outros cometimentos, já com aquele internacionalismo que caracterizará a mais avançada poesia produzida em Portugal, a partir dos anos 1960 e, na apresentação, diz que as peças constantes estão divididas em três partes: 1ª – Documentando uma profunda e essencial preocupação do Homem com a escrita. 2ª – Exemplos de poemas gráficos pioneiros. 3ª – Exemplos actuais de poemas gráficos, plásticos, concretos e combinatórios.” Nota-se, já, a abertura que se anuncia para esse universo de prática poética.

Melo e Castro, em 1977: “Quase toda a Poesia Experimental Portuguesa produzida a partir do início da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de POESIA ESPACIAL, uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes”. É claro que esta afirmação era até então válida, sendo que, a seguir, estará superada pelos acontecimentos poéticos, a começar pelo próprio Melo e Castro, e novos discursos foram necessários.

Poesia do Significante, utilizado por mais de um estudioso para qualificar a Poesia Experimental portuguesa, não me parece adequado bem porque toda poesia digna do nome chama a atenção para a materialidade do signo poético (Jakobson) e é por isto que, mais que ambiguidade, o signo poético é portador de uma carga semântica potencializada, sem compromisso com verdades, mas com o Admirável.

Parece que, com relação à poesia com forte carga de visualidade, dos anos 1970 (a partir da 2ª geração de experimentais, digamos), até hoje, não houve muita preocupação em classificar a produção ou estabelecer uma tipologia da mesma. A preocupação maior esteve em denominar o fenômeno como um todo: poesia intermedia, poesia intersemiótica, visopoemas, poesia multimídia, poesia intersignos, poesia interdisciplinar, poesia da era pós-verso. Porém, tudo faz crer que a primeira tentativa de classificação geral da produção a partir dos ’70 até aos ’80 (parte), no Brasil especificamente, incluindo a produção de criadores que vinham de bem antes, originou-se de um trabalho de Philadelpho Menezes (1960-2000), que se constituiu em sua Dissertação de Mestrado e depois publicado (Philadelpho Menezes. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.) Ele, também poeta, chegou a sistematizar algumas ideias que eram discutidas desde os anos 1970 por um grupo de São Paulo (onde se incluía o seu pai Florivaldo Menezes, poeta) do qual, por um curto espaço de tempo e mais tardiamente, ele chegou a fazer parte, como sua esposa, a artista plástica e poeta Ana Aly. E, dentre as ideias colocadas, a central era a da perfeita fusão de códigos no poema, não simplesmente justaposição ou superposição de códigos/linguagens. Bem, mas a classificação que ele apresenta, possui o mérito de ter sido a primeira tentativa de agrupar sob critério formal e valorativo poemas – então, minimizava o aspecto qualitativo de uns e supervalorizava de outros, sendo que era, em verdade, de difícil aplicabilidade. Poema Embalagem, Poema Colagem e Poema de Montagem Intersígnica, numa escala crescente quanto ao aspecto qualitativo. Chamou de Poesia Intersignos a que obtinha uma verdadeira fusão de códigos e chegou a organizar uma exposição no Centro Cultural São Paulo, com aquela denominação (1985). Tirando a repercussão negativa (mal-estar) que isto causou entre os poetas, essa terminologia nem chegou a ser adotada por outrem. Importante foi a exposição por ele organizada, também no CCSP (1988) e que reuniu grandes nomes da Poesia Visual, internacionalmente falando – Mostra Internacional de Poesia Visual de São Paulo – e que contou com a presença de Eugen Gomringer. Seu trabalho poético estava a se desenvolver e adentrando as novas mídias, quando veio a falecer. Ana Aly tem divulgado a poesia de Philadelpho Menezes por meio de várias exposições, principalmente na cidade de São Paulo. Seu mais bem realizado poema a meu ver (e não é o mais divulgado) é o que utiliza o anagrama “universo-souvenir”. Há quem não se preocupe com classificações, considerando apenas se o poema é ou não um bom poema, porém, aí, entra em jogo uma outra questão: o que vem a ser um “bom poema”? De qualquer modo, a pioneira classificação elaborada por Philadelpho Menezes fica como um estímulo para novas tentativas. Metalinguagem não é exclusividade de doutos – todos a fazem, com maior ou menor consciência, de modo simplório ou bastante sofisticado. A mais importante é a que venha a implicar, de facto, esclarecimentos acerca dos fenômenos das linguagens.

Obs. Toda uma apresentação cuidadosa (com discussão) é desenvolvida na “Introdução” da Antologia da Poesia Experimental Portuguesa: Anos 60 – Anos 80, pelos organizadores Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro (Coimbra: Angelus Novus, 2004).

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

23. Contactos entre Criadores etc.

Se foram raros (raros, não inexistentes) os contatos Brasil-Portugal em termos da Poesia e da Arte em geral, a partir do século XIX, no Brasil é quase inexistente o contacto entre os vários grupos/vertentes da Poesia Visual, como é genericamente denominada a poesia que, entre outros recursos, utiliza a visualidade (gráfica, cromática etc.) como elemento de ordem estrutural. No caso, por exemplo, da Bahia, foi diferente: considerando a revista Código lá editada, de 1974 a 1990, por Erthos Albino de Souza (1932-2000), engenheiro e poeta, que mais publicou em revistas, tendo sido pioneiro na utilização da linguagem computacional – ainda, o sistema Fortran – para a poesia, obtendo ótimos resultados, assim como, desde os anos 1960, colaborava, em pecúnia, com publicações que diziam respeito ao Concretismo paulista – quase-sempre com Antonio Risério (1953-) desempenhando importante papel de co-organizador e que despontou nos ’70 como menino-prodígio, inteligência extraordinária e grande talento para a Poesia, que praticou visualidades e fez uma das mais belas peças da Lírica em Língua Portuguesa: “por mais que eu tente pôr menos de mim…”, conhecedor, como poucos, do Concretismo paulista. Código foi uma importante publicação, chegando, prodigiosamente, ao nº 12! e era intimamente ligada a São Paulo, em especial a Augusto de Campos. No caso de Paulo Leminski, também: operando a partir de Curitiba, Paraná, a mesma ligação por afinidade de pensamento e amizade – o autor do Catatau pouco praticou visualidades e fez a sua revolução de linguagem construindo uma prosa poética que já entrou para a História, porém, até hoje mal-digerida no Brasil. Em Curitiba, Leminski organizou muitos números do Suplemento Pólo Cultural Inventiva, que veiculava o melhor da produção brasileira de fins dos ’70. Essas são, portanto, exceções. Mas porque essa falta de contactos num mesmo país? Tento responder à questão: 1º por ser o Brasil um país de dimensões continentais (mais de 8,5 milhões de km2), os contactos presenciais ficam difíceis, assim como apreciação de exposições, que essa poesia é, por natureza, exponível. 2º o predomínio Rio-São Paulo acaba por obrigar artistas em geral a mostrar seu trabalho nessas metrópoles, para que possam “acontecer” para o País, sendo que nem sempre os próprios artistas desses centros têm acesso aos media. Por outro lado, seria altamente positivo o desenvolvimento de outros centros irradiadores da produção artística brasileira, o que está a acontecer, muito embora esse desenvolvimento venha se processando com muita lentidão. O milagre da Internet não é garantidor de contactos ou de trânsito da informação em 100%. 3º A rivalidade existente – ainda – entre São Paulo e Rio de Janeiro. Tendo sido São Paulo o berço da Poesia Concreta (precedida, entre outros importantes processos, pelo Movimento de 22) e o centro irradiador de uma produção rigorosa e informada, e também pelo fato de ser a Pauliceia a capital econômica do Brasil, é vista como dominadora e atravancadora do desenvolvimento de outros Estados, quando, em verdade, a eternização de elites regionais tem sido a responsável pelo não-desenvolvimento local. (O Rio de Janeiro, como já colocou Décio Pignatari, representa a síntese entre um Brasil ruralista e um Brasil industrializado sendo, portanto, mais aceito). Se São Paulo está com o dinheiro, como tem sido dito, o dinheiro não está com os poetas de São Paulo, que a própria mídia impressa simplesmente ignora. Poetas paulistas, principalmente os experimentais, que possuem afinidade com o Concretismo, são excluídos de eventos por poetas experimentais de outros Estados e outras linhagens (há exceções). O caso do Poema-Processo, que se desenvolveu a partir da 2ª metade dos anos 1960, foi mais flagrante: poetas paulistas não eram admitidos e/ou desejados. Ficamos sabendo de eventos envolvendo o que comumente se chama de Poesia Visual, quando já aconteceu. De qualquer modo, fica a questão aí, para ser pensada. Nós, da Nomuque Edições, que também nos tornamos impressores, nunca contamos com patrocínios: nossas edições eram e são autofinanciadas na base da canalização de parte de nossos salários e, todos sabemos, edições autofinanciadas nunca dão retorno financeiro, bem porque a distribuição, sendo por demais precária, não propicia o ressarcimento dos custos, e nem é computado o fator-trabalho, que sai de nós-mesmos. A Nomuque Edições viveu, em certos momentos, um verdadeiro comunismo – e isto eu estou a dizer pela primeira vez – sem teorias, viveu, sem se auto-classificar, um verdadeiro sistema de cooperativa. É claro que o trabalho de edição/seleção envolvia um certo sectarismo. Em Portugal, país com menos de 100 mil km2, porém, complexíssimo, não se observou rivalidade entre cidades, como no Brasil e teve Lisboa como centro de irradiação do experimentalismo em Poesia, mas muita coisa aconteceu e acontece fora da capital: eventos de grande importância. Acredito que seja possível e é preciso romper com o monopólio exercido culturalmente pelos maiores centros populacionais do Brasil. A Poesia, as Artes, antes de tudo.

.E. M. de Melo e Castro a mim – e-mail de 10.11.2015:

Não, não houve nenhuma rivalidade entre Lisboa e Porto [as duas maiores cidades de Portugal], por várias razões. A primeira é que nunca houve nenhum grupo constituído, nem em Lisboa nem no Porto, nem em Coimbra, nem no Funchal (Madeira).

O [António] Aragão e o Herberto Helder eram naturais da Madeira, mas isso nada influiu na criação da revista experimental. É certo que os dois tiveram um projecto juvenil de fazerem uma revista que certamente nada teria de experimental.

Quando anos depois os dois se reencontram em Lisboa, o Aragão teve a ideia original de fazerem uma revista experimental para a qual convidaram os colaboradores do 1º número, em 1964. No 2º número, de 1966, eu entrei como um dos organizadores, responsável pelas colaborações internacionais.

Mas o centro irradiador foi sempre Lisboa, onde também se realizou o 1º happening português, organizado pelo músico Jorge Peixinho e outras exposições das quais a mais importante foi na Galeria de Arte Moderna de Belém, em Lisboa, 1980, onde surgiu a sigla PO-EX, que dura até hoje.

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Radicalizar: não há outra atitude para os que se empenham em chegar a algo novo. Elegem-se valores – buscam-se os pais artísticos e intelectuais – e todo o resto é refugado, independentemente de um certo valor que possa conter. Essa revisão, de modo a achar e apontar e valorizar a qualidade onde quer que ela esteja é coisa de maturidade e velhice, o chamado “estágio de sabedoria”. E curioso, se esses “pais” ainda estiverem vivos e atuantes e tiverem a chance de apreciar a obra dos mais novos, nela não se reconhecerão: de Freud a Pound a Duchamp. Os pais não se reconhecem ou não querem se reconhecer em seus filhos: “Ah! Então eu era assim?!” O importante, em certos momentos é ter projetos, independentemente da questão de sua exequibilidade, de suas possibilidades. Mesmo que beirando a impossibilidade, o importante é ter algo enquanto projeto e perseguir os objetivos ali explícitos.

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Compreendemos, nós do Ocidente, herdeiros dos gregos e até condicionados por um tipo de pensamento/raciocínio que nos vem da Hélade, o pensamento do Oriente, do Extremo-Oriente, digamos? O que já somos nos permite adentrar os segredos de um outro povo, um outro universo? O domínio do idioma já é uma porta bastante larga, mas não o suficiente. Não se penetra o imo de uma Civilização se não se formou dentro dela. Pode-se compreendê-la em parte e há gente curiosa e por demais inteligente que fez tentativas e até chegou a resultados satisfatórios (para os padrões ocidentais), mas, certamente, não chegou lá (o mesmo será verdadeiro para os de Lá com relação ao Cá). Compreende-se o que se pode compreender e há disto consequências. Boas, enriquecedoras. Se se entende como um da terra, nada acontece além do entendimento, mas se se entende como é possível entender, isto terá desdobramentos e acréscimos na cultura intrusa. É claro que não sou especialista e nem tive o alcance, com relação a Fenollosa e Pound, que Haroldo de Campos teve, mas arrisco-me a dizer que Fenollosa, um erudito com contribuições inestimáveis para o Oriente e para o Ocidente, entendeu o Ideograma como pôde entender, daí plantar ideias que seduziram Pound e a coisa deu no que deu: um enriquecimento da Poesia no Ocidente, com muitos desdobramentos importantes. Foi preciso mostrar aos orientais as riquezas culturais que eles possuíam – e isto foi feito por ocidentais, os grandes observadores. Para um japonês, canji era canji e bastava! Mas ocidentais (Haroldo de Campos também entra aí) mostraram o que havia de concreto na escrita que japoneses haviam assumido dos chineses. Sierguiei Eisenstein não lamentou um certo americanismo que acometia o cinema japonês, quando o x da montagem já estava no seu sistema de escrita? Compreenderam os fauves, os cubistas a escultura da África Negra? Haviam compreendido os impressionistas e pós-impressionistas, plenamente, a xilogravura japonesa? Aí é que está: por só compreenderem o que podem ou puderam compreender é que fizeram o que fizeram: revoluções na linguagem – senão, não as fariam, integrar-se-iam nas respectivas culturas. Um grande museu, uma grande biblioteca, não apenas evidenciam a importância que um país dá à Cultura e à Arte em particular, mas propiciam a quem os possui a ilusão de domínio sobre aquelas culturas lá representadas, a ilusão da ciência sobre aqueles povos e, mesmo (inconfessavelmente) o poder do tacão sobre eles. Coisas de Humanos Seres.

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Houve época em que eu tinha mãe jovem-senhora, e dizia: “Depois dos 80, tudo é lucro!” Hoje não penso assim e até me desespero com certos passamentos, mesmo aos mais de 100 anos de idade. Recentemente, em Portugal, foi a vez de Herberto Helder (1930-2015), natural do Funchal (Madeira), faleceu em 23 de março. O poeta, fino poeta, esteve ligado às origens da Poesia Experimental portuguesa tendo sido co-organizador de Poesia Experimental 1 e 2, importante revista – depois, afastou-se dos experimentais. Ana Hatherly (1929-2015), natural d’O Porto, faleceu em 5 de agosto. É poeta experimental histórica, artista plástica e pesquisadora – fez importantíssimo trabalho de militância crítica. Gilberto Mendes (1922-2016), natural de Santos-SP-Brasil, morreu em 1º de janeiro. Músico, com atuação importante junto aos poetas concretos, cujos poemas musicou – promoveu, durante décadas, o Festival Música Nova. Em 16 de abril de 2015, aos 53 anos, faleceu Pipol (José Waldery Mangieri Pires), natural de Tupã-SP-Brasil – poeta e homem multimedia, ele criou e administrou o Cronópios, Portal de Literatura, com milhões de acessos mensais, abrigando um leque considerável de produção artística, sem preconceitos, sem sectarismo. A impressão que dá, com esses desaparecimentos, é a de que o Mundo se vai empobrecendo. De qualquer modo, a Vida se processa. Auguri!

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

22. Anotações às Margens do Tejo: III.

O Tejo em Portugal é o Tejo. Não é o Tajo, nem o Tagus. É o Tejo. Sente-se pelo olfato, ao dele se aproximar, quando está baixo. Quando está alto, invade os degraus da rampa que, do Terreiro do Paço (Praça do Comércio), sob as vistas de D. José I (protegido por três bandas de arcos), dão acesso a ele e imita o mar, lançando suas ondas nervosas a assustar turistas. Gaivotas sempre a rondar, ora mais ora menos, às vezes agitadas a fazer voos rasantes. O Tejo. O mar-oceano lhe fica próximo e dita-lhe certas condutas. O Tejo deu e dá Literatura!

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Tanto em Portugal como no Brasil, houve e há encontro de gerações, por afinidade artística. No âmbito da experimentação, os nascidos a partir de fins dos anos 1920, inícios do anos 1930 e um pouco mais, continuaram produtivos e corajosos (coragem artística, coragem intelectual) e receptivos com relação aos mais novos, que veem nos mais velhos seres paradigmais e desfrutam desse convívio raro e gratificante. Podemos afirmar que chegamos à 3ª geração de experimentais, d’Aquém e d’Além Mar. Figuras como Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Ronaldo Azeredo, Edgard Braga a conviver com Paulo Leminski (este, ainda um adolescente nos anos 1960, esteve com seus ídolos e chegou a ter poemas publicados em Invenção 4 e Invenção 5. Leminski – 1944-1989 – não chegou a ser um “concretista”, propriamente, mas sempre um experimentador antenado, cultivando a amizade dos históricos), Lenora de Barros, Paulo Miranda, Omar Khouri, Walter Silveira, Tadeu Jungle, Aldo Fortes, Júlio Mendonça, Arnaldo Antunes, Gil Jorge, João Bandeira, André Vallias… Em Portugal, figuras como Melo e Castro, António Aragão, Salette Tavares, Ana Hatherly, José-Alberto Marques em contacto com Alberto Pimenta (também um teórico importante), Silvestre Pestana, António Nelos, Fernando Aguiar, António Barros, Manuel Portela, Rui Torres… Esse convívio existiu (e ainda existe) e, desconhecendo idades, colocou lado a lado poetas de gerações diferentes, que tinham como propósito sondar o novo, experimentar, enfrentar o risco.

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Diferentemente do que foi apregoado nos anos 50 e 60 pelo pessoal adverso à Poesia Concreta, esta apontou para uma grande abertura (para a frente) no exercício poético, o mesmo acontecendo com a Poesia Experimental em Portugal. Grande parte do que ora se observa, em termos de uma poesia mais condizente com o hoje, vem dessas práticas poéticas que se desenvolveram nos anos 50 e 60, com seus textos críticos, seus manifestos, podemos até dizer: com sua militância poética. Apreciar revistas como Invenção, do nº 2 ao 5, Poesia Experimental 1 e 2, Operação 1, Hidra 2 é ver que aquelas práticas poéticas apontavam para o futuro e para a valorização de novas tecnologias, novas linguagens (e nisto, os concretistas de São Paulo foram pioneiros, já nos anos 1950) e um internacionalismo, a começar pela questão da visualidade e convívio com gentes de todos os lugares, nos contactos pessoais e nas publicações. E nisto, a ânsia internacionalista em Portugal é tão ou mais notória que no Brasil.

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Em texto publicado primeiramente em 1984, Haroldo de Campos interpreta aquela atualidade como uma época Pós-Utópica (Haroldo de Campos. “Poesia e Modernidade: Da Morte da Arte à Constelação. O Poema Pós-Utópico.” In: O Arco-Íris Branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 243-269). Se Baudelaire, que inaugura a Modernidade, ainda opera com formas da tradição poética, Mallarmé, com o Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (1897), já é um pós-moderno – então, num tempo em que as utopias (entendidas como projetos alternativos, como expectativas de mudanças futuras) minguaram, melhor seria chamá-lo pós-utópico. E explica: o que norteava os grupos de vanguarda históricos era a Utopia – esta lhes dava sustentação – “Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica” (Campos, 1997: 268). E mais: “Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamento ancorado no presente” (p. 268). Nós vemos destacando-se, nessa “pluralização das poéticas possíveis”, como que uma poética de ponta, representada por aqueles que fazem uso adequado das novas tecnologias/novas linguagens, de par com o “conceitual” em Arte, com todas as suas facetas.

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O advento do Concretismo poético no Brasil foi traumático e acabou por entrar como um divisor de águas na Poesia etc do País. E, por falar nisto, a Poesia Concreta no Brasil, criou inimizades duradouras, gente furiosa, em vários âmbitos, mormente na Faculdade de Letras da maior universidade do País, a USP. A Poesia Experimental portuguesa também causou escândalo e chegou a plantar inimigos. As pessoas têm medo de enfrentar aquilo que não conhecem ou conhecem mal ou não compreendem. Têm medo de ter de rever seus conceitos e posições, têm medo de perder o seu objeto de indagações ou vê-lo desvalorizado e combatem o que não conseguem de facto compreender. Essa briga, no Brasil, durou muitas décadas e vai perdurando, embora arrefecida, enquanto protagonistas de um lado e de outro estiverem vivos. Quanto à influência, até inimigos acabaram por se render – sem reconhecer publicamente o facto – a certos procedimentos próprios da Poesia Concreta. A não articulação de um grupo, propriamente, em Portugal, entra como uma das diferenças notórias entre o que houve na Terra Brasilis e em Território Luso. Tendência da agregação, no Brasil, com formação de grupos, com maior ou menor sectarismo: do Concretismo (Ruptura e Noigandres, 1952) e ao Neoconcretismo e Poema-Processo e, no caso de Portugal, a dispersão, mesmo havendo afinidades entre vários criadores. Em Portugal, o agrupamento dos experimentais se deu mais em torno de revistas e, portanto, coisa do efêmero, sem plataformas de ação que fossem endossadas por todos, propriamente: manifestos a várias cabeças e muitas mãos. Manifestos, houve, desde o editorial de Poesia Experimental 1 (1964), porém, sempre a trazer a assinatura de um dos criadores (é claro que subentende-se que os outros viessem a concordar com o que estava sendo expresso), o mesmo no Suplemento Especial do Jornal do Fundão, de janeiro de 1965. Publicações causaram escândalo, em Portugal, houve muita reação adversa.

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Uma coisa interessante a se notar foi a duração do Grupo de Concretista de poetas de São Paulo (que compreendeu, também, dois cariocas, podendo ainda ser considerados um alagoano e um pernambucano): enquanto grupo, foi dos que mais duraram na História dos Modernismos, no Mundo. O Grupo Noigandres, formado em 1952, adentrou os anos 60, até à publicação de Invenção 5 – inícios de 1967. Porém, apesar das diferenças cada vez mais evidentes dos trabalhos dos poetas (porém, sempre a comportar experimentação), continuaram a defender certas bandeiras, mesmo não mais se constituindo em grupo, propriamente (o texto “Teoria da Guerrilha Artística” [1967], de Décio Pignatari, que ele credita, também, a Augusto de Campos, traz essa preocupação com relação a uma poesia/arte que se mantém experimental). Essa forte amizade e confluência, até certo ponto, de interesses poéticos, durou até à morte de quase-todos – sobrevive, e em plena atividade, Augusto de Campos.

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Ezra Pound, poeta e crítico, tradutor e promoter estadunidense teorizou sobre crítica e críticos de modo aforismático, sem rodeios elucubrativos. Apontou tipos de crítica e de crítico e, destes, diz que os melhores são os que colaboram para melhorar aquilo que criticam (crítica = discernimento) e, a seguir, os que enfocam o melhor da produção poética. E a função da crítica: uma delas seria a de antecipar a obra de arte, mas essa crítica tem cabido a poetas/artistas e são, na verdade os manifestos: plataformas de ação. Pound diz, enfim, que é o tipo de crítica inútil, pois, por um lado, é feita pelos próprios “atores” que farão a demonstração e que o que resulta é sempre superior à proposta. De qualquer modo, muitos manifestos tiveram importante papel em muitas das poéticas do século XX, e em todas as Artes. Por outro lado, muita coisa ficou em discussões, conversas, sem ir ao papel, coisas que eram faladas em reuniões de poetas e artistas em geral, fossem onde fossem. Redigir um manifesto já significa sistematizar, de algum modo as ideias para torná-las inteligíveis e públicas. Mesmo que alguém não assine um dado manifesto, estará com ele a concordar, se aceita participar da mesma revista, exposição, apresentação musical etc. Sectarismo existe se se aceita participar de projetos, mesmo não constituindo aquilo que se chama de “grupo”, que é algo mais organizado, digamos, e com propósitos aceites e até obra com grande afinidade formal, ou seja, há uma renúncia parcial e temporária com relação ao projeto individual, em prol do projeto coletivo, do grupo (veja-se texto supra citado, de Haroldo de Campos). E manifestos tiveram vez e voz principalmente dentro dos Modernismos. Depois, houve uma espécie de arrefecimento no âmbito de propostas de linguagem. O Manifesto de Fundação do Futurismo (1909), de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), pesou sobre todos os outros que vieram depois. Estamos no território da “política das artes”. O Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958) é o mais famoso manifesto brasileiro, fora do Brasil.

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Poesia Experimental, o Experimental – vejamos o que disseram três dentre os “históricos”:

.Herberto Helder, em Poesia Experimental 1, 1964:

Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício. A linguagem encontra-se sempre ameaçada pelos perigos de inadequação e invalidez. É algo que, no seu uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta. Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas.

.António Aragão em Jornal do Fundão, Suplemento Especial, de 24.01.1965:

A posição experimental é francamente uma posição de movimento. Uma poesia experimental, visual, verbal, táctil ou auditiva, essa poesia saída das máquinas ou dos jornais, não admitem fronteiras para o espírito, nem desprezam qualquer técnica para o seu conseguimento. Por isso mesmo não se pode pretender fazer a análise de uma poética nitidamente experimental usando um instrumento crítico inadequado ou fabricado sobretudo para o conhecimento de estruturas convencionais.

 .E. M. de Melo e Castro em Jornal do Fundão, Suplemento Especial, de 24.01.1965:

A Arte Experimental é genericamente uma tendência para a reestruturação sistemática dos métodos e razões da criação artística integrada no tempo tecnológico e no espaço vivencial em que nos encontramos. É assim que se pode dizer que toda a arte nasceu e nasce sempre experimental, só deixando de o ser quando cessam as suas motivações existenciais.

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Essa coisa de se dizer “Tal tendência esgotou suas possibilidades de…” tudo se esgota, ou seja, cumpre o seu papel enquanto portador de informação, daí, acaba e/ou continua naquilo que tem de continuar, pois já entrou na corrente sanguínea do pensamento global. A radicalidade (que implica risco) é a mãe da invenção. Poder-se-ia considerar que toda arte é experimental, à medida que o fazedor – em posse dos conhecimentos da tradição, que ele aciona – tem de lutar com o acaso (ou até incorporá-lo). Em verdade, nem sempre a Arte é inovadora e/ou quase sempre reitera uma excelência ou dilui “protótipos”. O experimental se expõe ao perigo porque sempre lida com a incerteza, mas desafia o risco do abismo. E acrescenta.

 Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

21. Necessárias Teorias para as Artes (paráfrases).

Teorias: Os Humanos pensam sobre, exigem explicações e basta, para certificar-se disto, atentar, nas crianças, para a fase dos porquês. Daí, a ânsia das generalizações… Algumas teorias são tão abrangentes que acabam por não se conter nos limites dos objetos para os quais foram criadas e atingem outros campos, servindo de instrumental de análise e nada mau se se tiver o devido cuidado na aplicação. É o caso dos textos teóricos/críticos de Ezra Pound, plenos de aforismos, para ou pensando na Literatura (em verdade, na Poesia que, para ele, não era bem literatura), mas que se aplicam para todas as Artes, como a apresentação das categorias de criadores (ele diz escritores), aquelas seis, a saber: inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, belles lettres e os lançadores de modas. Às vezes, surge a dúvida (principalmente em sala-de-aula) de como diferenciar um inventor de um lançador de moda – a questão, em verdade, não apresenta complicações, já que o inventor opera na estrutura da linguagem e o lançador de moda, na superfície. Os inventores são os que, de facto, trazem algo novo cuja absorção por parte do grande público é lenta e, via de regra, indireta (diluição daquilo que foi invenção chega antes e penetra com maior facilidade, vindo a fazer parte do repertório do fruidor). Mestres são, segundo Pound, aqueles que combinaram processos introduzidos por outrem (os inventores) e realizaram obra atingindo e até ultrapassando o grau de excelência. Conclui-se, daí, (e Pound foi inventor e mestre) que a arte nem sempre é inovadora, podendo ser apenas reiteradora de um certo grau de excelência das obras. O diluidor reduz, rebaixa o repertório, em comparação com obras de inventores e mestres, porém, isto não quer dizer, necessariamente, que seu trabalho seja algo desprezível – há diluidores de alto repertório. Já os bons escritores (criadores) sem qualidades salientes são os que operam no horizonte da medianidade e são aqueles que produzem a maior parte do que é produzido em todas as Artes, num dado período. Essas categorias, porém, se entrecruzam e um mesmo criador poderá fazer parte de duas ou mais: inventor, mestre e até diluidor da própria obra, por exemplo. Bem, o que mais nos interessa, aqui, é a categoria dos inventores, que são os que apresentam o primeiro exemplo (a sua obra) de um novo procedimento e, portanto, são aqueles que adentram a linguagem por meio da qual operam, e agem em sua estrutura – porque têm conhecimento da tradição – sendo, portanto, pesquisadores, buscadores que enfrentam os riscos de tal aventura e assumem as suas descobertas, que podem resultar diretamente desse trabalho, incluindo o aproveitamento do Acaso. Este, como alguns já apontaram, estará sempre a rondar essa procura e é preciso ter repertório para percebê-lo e valorizá-lo e se utilizar dele. O pesquisador da linguagem, o produtor de linguagem, o designer da linguagem (Décio Pignatari, referindo-se ao poeta) possui um repertório tal, uma abertura tal que percebe a ocorrência-acaso, compreende-a e a incorpora, quando considera que é o caso. Então, experimentação e invenção estão intimamente ligadas – o inventor é um experimentador que chega a resultados que podem implicar subversão, modificações profundas na estrutura da linguagem: revoluções. Essa coisa de dizer que toda arte é experimental, senão não seria arte, não se sustenta – 1º porque é arte (objeto artístico) aquilo que é encarado e consumido enquanto tal, daí termos arte barata, arte de médio e altíssimo repertório, pois, o que chamamos Arte se corporifica nas chamadas obras de arte – portanto, um objeto pode ser artístico, sem que nele haja inovação, propriamente, e alguém o encarará como tal e ele cumprirá, para aquele repertório particular o que uma obra carregada de alta informação cumprirá para outro (imagine-se uma obra de Maliévitch, um poema de Cummings, uma peça de Schoenberg): toda mensagem (incluindo as artísticas, é claro) informa, dependendo do repertório de quem a recebe; 2º assim como os estraga-festas diriam: “Mas a poesia não foi sempre intersemiótica?” ou “A arte não é sempre experimental?”, diríamos: “A intersemioticidade aí referida é um propósito e não um acerto ao acaso” e “Toda arte é experimental apenas se se considerar que o exercício artístico está certamente cercado pelo acaso e que o artista deverá sempre lutar contra, domar esse acaso ou incorporá-lo, até”. Via de regra, o inventor, o artista pesquisador tirará proveito desse acaso que poderá ser a mola-mestra da invenção. Daí que a invenção norteou as vanguardas do Modernismo e vem até os dias atuais (com menos estardalhaço, porém) em que o esforço mais se concentra na compreensão, domínio e utilização de novos meios/novas linguagens, propiciados por essa revolução silenciosa do digital/virtual. Não à toa os concretistas brasileiros, em fins dos 50 e inícios dos anos 60 escolheram o nome Invenção para sua segunda revista (a primeira havia sido Noigandres, nome que chegou a ser tido como palavra-mistério e estar em poemas de dois inventores: o poeta provençal Arnaut Daniel, século XII e, no séc. XX, o estadunidense Ezra Pound) e os poetas da vanguarda lusa, o nome Poesia Experimental (dois números) à sua revista (1964-66). É claro que, quando os poetas falam de poesia/arte experimental, estão a considerar as altas esferas das manifestações artísticas. Experimentação envolve risco: “Poesia é risco”, Augusto de Campos, pois, para ele, Poesia tem de adentar o território da invenção, do desconhecido. Muito embora, em última instância, para Ezra Pound, os manifestos acabam sendo inúteis (pois se constituem em crítica antecipadora feita pelos próprios criadores, sendo que os resultados sempre superam as propostas), são muito importantes, à medida que deixam explícito que o artista é um ser que possui consciência de linguagem. Mais importante do que pensar na exequibilidade de propostas, é tê-las enquanto projeto. E toda obra nova, feita ou pretendida, exige uma maneira nova de encarar o objeto artístico e, em certo momento – mormente quando é dada à luz (quando a obra é publicada) – a crítica estabelecida é apanhada sem instrumental adequado para abordá-la; daí, a necessidade de os próprios produtores (artistas) fazerem a reflexão sobre, ou seja, a metalinguagem. Nas vanguardas dos anos 50, 60 e até 70, vemos a melhor metalinguagem feita pelos próprios artistas-poetas: um misto de exposição de projeto, esclarecimentos até didáticos e agressividade contra o establishment. Daí, tantos textos/manifestos que, a partir de um outro momento, quase que desaparecem e, retornando, podem até tomar a feição de grandes volumes, que nem são passíveis de grandes contestações, como esses que apregoam a necessidade de se trilhar os caminhos das novas mídias/novas linguagens. O que se observa, porém, é uma verdadeira mistura de meios e linguagens, sendo que o artesanal se mescla ao industrial e ao digital, época em que ganha relevo e destaque o leitor e em que se buscam caminhos para uma maior interatividade, de facto. Vejam-se, por exemplo, as mostras de artecnologia– crianças e adolescentes (pois já nasceram dentro dessa realidade) dominam a manipulação dessas máquinas com trabalhos que permitem uma certa interatividade. Daí que, ressaltada a dimensão lúdica, a revolução que se processa passa como que despercebida para a grande maioria. Nossa leitura-do-mundo está condicionada pelo nosso repertório, assim, a nossa leitura dos complexos sígnicos artísticos ou não-artísticos. Mesmo havendo um repertório comum, patrimônio de toda uma comunidade ou sociedade, cada indivíduo apresenta a sua singularidade repertorial e essas peculiaridades é que permitem tantas leituras de uma mesma obra (coisa que a Semiótica peirceana explica brilhantemente, quando adentra a questão do Interpretante, que é parte integrante do Signo). Uma leitura pobre ou empobrecedora de uma obra é uma leitura reles, simplesmente: o signo (a obra, o complexo sígnico) estará à espera de um leitor ideal, que fará uma leitura satisfatória, porém, nunca completa, jamais definitiva, mesmo que venha a satisfazer os aficionados e a sociedade em geral, por muito tempo até. Bem, certa vez, comentei com Augusto de Campos sobre a dificuldade que apresenta a leitura do Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958), ao que ele, discordando, disse-me: – O texto é didático. É claro que os manifestos têm de ser necessariamente didáticos, pois criticam uma situação, direta ou indiretamente, e fazem propostas com algum grau de novidade e são publicados, ou seja, querem que se saiba o que pretendem os signatários daquele texto, panfleto, manifesto. Sim, do modo como as ideias são colocadas no Plano-Piloto, podemos considerá-lo didático, mas para um leitor de alto repertório específico nas coisas das Artes em geral e da Poesia, em particular, pois são muitos os conhecimentos ali veiculados. O mesmo se pode dizer do livro-manifesto do poeta Ernesto Manuel de Melo e Castro A Proposição 2.01: Poesia Experimental (1965), em que assuntos – tendo a Poesia no centro de tudo – são colocados didaticamente, porém, percebe-se que é para um leitor de altíssimo repertório – ao final do volume, uma antologia exemplificadora do experimental em Poesia. Num clima de entusiasmo pela invenção e perspectiva de mudanças para toda a Sociedade, é “natural” que se nivelem as coisas por cima. – A massa ainda comerá do fino biscoito que fabrico. Oswald de Andrade dixit.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

20. Reuniões de Poetas e doutros Criadores (alguns lances).

Tanto na Europa como na América (de Sul a Norte), poetas e artistas em geral discutiam procedimentos, praticavam a crítica (= discernimento) e bebiam e comiam e até se agrediam verbal e/ou fisicamente (entre os gregos, havia, além de conversas ao ar-livre e até aulas que eram ministradas a caminhar, as reuniões em que assuntos propostos eram “trabalhados”, enquanto se bebia vinho, mais ou menos diluído com água, daí, sympósion, que significa ocasião em que “se bebe junto”) e não à toa há o célebre texto de Platão, Sympósion, traduzido como O Banquete, em que o assunto escolhido para se discorrer sobre foi o Amor. Bem, saltemos mais de 2 milênios! Em fins do século XIX e inícios do XX, alguns lugares ficaram famosos por terem dado o ensejo a reuniões de artistas e poetas em particular: bares, restaurantes, residências (antecedidas pelos “salões”, também em residências) etc. Em Lisboa, não se pode esquecer, no 1º Modernismo, de A Brasileira do Chiado. O Martinho da Arcada, na arcada da Praça do Comércio (Terreiro do Paço), frequentado por muita gente célebre antes, mas, em especial, por Almada Negreiros e Fernando Pessoa – de lá, a pouco mais de 100 metros, corre o Tejo, em direção ao Atlântico, que está bem próximo: uma esticada de olho e vê-se o Rio. Esses Cafés ficaram na História e ainda estão a funcionar e a atrair, por pura curiosidade, letrados e não-letrados do Mundo todo, sendo que os aficionados da Poesia têm como que a ilusão de estarem a aprisionar um residual de energia… No Brasil, em São Paulo, o berço do Modernismo brasílico, ficaram famosas casas que se dispunham a receber poetas e artistas em geral, dos inícios do século XX, a parte dos anos 1940: a Vila Kyrial, do Senador Freitas Valle (mais de transição que propriamente modernista), a de Paulo da Silva Prado (que chegou a hospedar o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, que esteve no Brasil pela primeira vez em 1924), a de Dona Olívia Guedes Penteado (com seu “Salão Modernista”), a de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (que abrigava o mais famoso quadro da série Tour Eiffel, o de 1911, de Robert Delaunay, e que pertenceu à pintora) e a de Mário de Andrade, sendo esta última a única remanescente, porém, sem o acervo do escritor-polígrafo que, em grande parte, encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. É claro que outras casas chegaram a receber criadores, mas sem a importância das acima citadas. As reuniões informais (houve, também, as mais formais, para tratar de assuntos específicos, mas predominaram as informais em que especificidades poéticas e de edições também eram assuntos tratados), a partir dos anos 1970, aconteceram com bastante frequência em casa de Augusto de Campos, à Rua Bocaina, nas Perdizes, São Paulo. Uma casa (em verdade, um apartamento) que teve fundamental importância para a Poesia brasileira nos anos 70 e 80. O poeta e sua esposa Lygia de Azeredo Campos reservavam um tempo considerável de suas vidas para receber pessoas interessadas em Música, Pintura, Poesia, Artes Plásticas e Gráficas, Cinema etc, e que sabiam da importância e da sabedoria de Augusto. Os anfitriões tinham essa disposição e lá o assunto principal girava em torno de Poesia e outras artes, tendo a Música um lugar especial nas conversas. De Caetano Veloso e Walter Franco a John Cage, de Julio Plaza e Regina Silveira a Geraldo de Barros e Hermelindo Fiaminghi, de Décio Pignatari e Ronaldo Azeredo a Paulo Miranda e Walter Silveira e Lenora de Barros e Tadeu Jungle e Júlio Mendonça e Arnaldo Antunes. Grande divulgador, também, o Augusto de Campos, pessoa muito informada quanto à produção internacional e brasileira de arte de invenção. Era costume os poetas, com suas edições-de-autor, ou seja, autofinanciadas, deixarem vários exemplares de seus trabalhos com o poeta, que os passava adiante, para os frequentadores da casa. A residência de Augusto de Campos, em cerca de duas décadas, desempenhou, em São Paulo, o mesmo papel que as acima mencionadas, só que por muito mais tempo, em época de não-sectarismo. E já se estava vivendo o momento da 2ª geração de experimentadores no Brasil que, como em Portugal, se mescla com os da 1ª, que continuaram atuantes e inventivos. A casa-ateliê de Julio Plaza e Regina Silveira, na região do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, à Rua Baronesa de Bela Vista, onde o casal se estabeleceu quando da volta de uma longa estada em Porto Rico, recebeu também, além de artistas plásticos do Brasil e de fora (coisa que Regina faz até hoje), muitos poetas, jovens e menos jovens, e eles chegaram até a fazer trabalhos em colaboração, como os que Julio Plaza fez com Augusto de Campos e que marcaram as Artes Gráficas no Brasil. Houve, em São Paulo, um centro de estudos das Artes, chamado Aster, criado por Julio Plaza, Regina Silveira, Donato Ferrari e Walter Zanini, que funcionou de 1978 a 1981 e que foi uma espécie de “escola dos sonhos” e que teve de encerrar suas atividades por estar localizada em área exclusivamente residencial, à época. O Aster abrigou muitos encontros de poetas e artistas plásticos, e Zero à Esquerda, publicação coletiva da Nomuque Edições foi, em grande parte, impressa serigraficamente lá, na base do “ateliê livre”. Alguns bares e casas, na capital e no interior (Pirajuí, Presidente Alves, Bauru) serviram de local de encontro dos poetas “intersemióticos”. Com o fechamento do Aster, resolvi montar, em um corredor de meu apartamento, à Rua Dona Veridiana, em São Paulo, uma mesa tosca de serigráfica que era, também, “estúdio” de gravação de matriz serigráfica e isto possibilitou, milagrosamente, a feitura das Artérias 5 e 6, sendo que a de nº 6 foi a revista de mais longa gestação na história da cultura brasileira: mais de 10 anos, do projeto ao lançamento, e as sessões de impressão, como no Aster, eram um misto de canseira e alegria, com muita gente comparecendo (certa vez, eu + Sonia Fontanezi, em conversa com Décio Pignatari em um bar, ele meio de mal com a vida disse, referindo-se à alegria de fazer: – Preferiria eu, mil-vezes, estar naquele corredor da sua casa imprimindo com vocês. E Décio nunca havia ido à minha casa, mas tinha ouvido falar de nossos encontros e impressões serigráficas, que agora reconhecemos: dali saíram pequenas edições primorosas! Hoje, em torno da bissexta Artéria, ainda acontecem, de raro em raro, encontros em que se discutem assuntos relacionados à Poesia.

Em minha troca de e-mails com os históricos Augusto de Campos (1931-) e Melo e Castro (1932-), ambos atuantes e residindo em São Paulo, lancei-lhes a questão das reuniões e obtive respostas. Vejamo-las:

Omar Khouri (02.12.2015) – Caríssimo Augusto

Cá estou eu, de novo, a incomodá-lo com coisas do passado! Nos anos 1970 e 80, sua casa (ap. da Bocaina) foi o lugar mais importante de reuniões não-sectárias de poetas e outros fazedores. Gostaria de saber onde vocês – em época que existiram como “grupo”, nos anos 1950 e 60 – se reuniam para discussões, trocas de informações, apreciação de novos poemas.

Abraços-mil, também para Lygia
Omar, o Khouri

Augusto de Campos (15.12.2015) – Caro Omar, principalmente na Rua Cândido Espinheira, 635, onde residíamos Haroldo e eu com nossos pais. Décio vinha de Osasco, chegava no sábado e pernoitava em casa, voltando no domingo. Menos frequentemente íamos a Osasco. Depois, nos bares com os pintores, Instituto dos Arquitetos, Clube dos Artistas, Museus de Arte e Arte Moderna, casas de uns e outros pintores, residência de Haroldo, minha, na Cândido Espinheira 866, Décio, nas Perdizes, Homem de Melo, Rua Diana (se não me falha a memória), etc.

Abraços

Augusto

Omar Khouri (10.11.2015) – Caro Melo e Castro

Sei que os poetas experimentais portugueses não se constituíram em “grupo”, o que implica não-sectarismo. Mas, gostaria de saber onde se reuniam, quando era necessário: em algum bar ou restaurante? Na casa de alguém dentre os poetas?

Abraços

Omar

Melo e Castro (10.11.2015) – Caro Omar Khouri

Nós nos reuníamos em Lisboa num café perto do Saldanha chamado Monte Carlo ou numa pequena pastelaria mesmo na Praça Saldanha: a Paraíso. Ambos já não existem. Ou em outras pastelarias ao acaso. Nunca constituímos um grupo como por exemplo os Surrealistas-Abjeccionistas, no café Gelo, no Rossio, onde se reuniam todos os dias para coscuvilhar… Nós trabalhávamos cada um em sua casa!

Mesmo faltando alguns dados para esta pesquisa, principalmente no que se refere a Portugal (Lisboa), encerro, por aqui, este texto, esperando poder completá-lo em breve. Acabo de me lembrar das residências (foram, pelo menos, 3) do casal Samira Chalhub e João Jorge Rosa Filho, em Vila Mariana, São Paulo que, em décadas, ocasionalmente, recebia gentes do intelecto e da sensibilidade para jantares, regados a boa comida, bebida e conversa (de Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Melo e Castro e José Saramago. Foi numa dessas ocasiões, em 1976, que ouvi de Décio Pignatari um dos três elogios que chegou a me fazer – disse ele: – Você é autor da mais bela página, da melhor revista que se faz hoje no Brasil. Tratava-se de uma de minhas erotografias, que acompanhava tradução de epigrama de Marcial, por Luiz Antônio de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda, na revista Qorpo Estranho 1, cujo projeto gráfico era de Julio Plaza e a edição de Régis Bonvicino et alii), da PUC-SP, um centro universitário que esteve na vanguarda da divulgação da poesia mais avançada que se fazia no Brasil e no Mundo (Décio Pignatari e Haroldo de Campos exerceram, lá, a docência, assim como Samira Chalhub e Lúcia Santaella, que levou adiante os estudos relativos à Semiótica peirceanas, revelada no País por Décio Pignatari), de bares de São Paulo onde poetas se reuniam com alguma constância, mas mencionarei apenas um, por ora: O Krystal Chopps, à Rua Cardoso de Almeida, esquina com a Dr. Homem de Melo, nas Perdizes, que é onde foi lançada, em 15/16 de julho de 1975 (noite mais fria dos últimos tempos, em São Paulo), o nº 1 da revista Artéria. Estavam presentes: Augusto de Campos, Carlos Valero, Paulo Miranda, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Luiz Antônio de Figueiredo, Hermelindo Fiaminghi e Omar Khouri. E foi no mesmo local, muitos anos depois que ouvi de Décio Pignatari o seguinte: – Pois é, nós fizemos todo um rastreamento crítico, elaboramos todo um paideuma, falamos sobre o melhor do melhor e agora estamos nas mãos dos medíocres! Não ousei, para evitar sobressaltos, perguntar quem seriam os “medíocres”. É claro que não se resolvem os destinos do Mundo numa festa ou numa mesa de bar, porém, muitas ideias transformadoras podem iniciar o seu trajeto revolucionário a partir dessas ocasiões, desses lugares.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

19. Anotações às Margens do Tejo: II.

Entre Lisboa e São Paulo há um Oceano e uma Serra, a do Mar. Isto quer dizer que uma enorme distância se verifica entre o Tejo, um rio ibérico, mas a Cara de Portugal e o Tietê, um rio totalmente paulista e que diferentemente do Tejo, que desce de Espanha e entra no mar em Portugal, o Tietê, que é a Cara de São Paulo, nasce próximo ao mar-oceano e deságua em outro rio, o Paraná, depois de rumar Noroeste pelo Estado. O Tejo parece ter menos problemas que o Tietê que, antes de se tornar um grande rio, contamina-se de dejetos humanos e detritos industriais e chega a morrer na Pauliceia, entre envenenado e sufocado pela urbe, para renascer mais adiante. As cinzas do historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda (de mocinho, representante de Klaxon no Rio de Janeiro e ensaiando ficção) não foram depositadas no Tietê, como ele desejou, pois a família considerou o rio, na altura da capital, indigno de recebê-las, e tinha razão. Só não fiquei sabendo se foram lançadas mais adiante, na região de Jaú, por exemplo, em que o curso d’água já se avolumou e apresenta uma melhor aparência. Lisboa não sufoca, acaricia o Rio. Lisboa foi centro de convergência das ansiedades modernistas lusas e de sua irradiação, assim como das façanhas da Poesia Experimental. São Paulo iniciou a revolução modernista no Brasil e foi berço da Poesia Concreta.

§

Houve aproximação entre fazedores de diferentes áreas em torno de algum projeto ou por pura afinidade e comunhão de ideias, algumas ideias: poetas, músicos, artistas plásticos, tanto em Portugal como no Brasil (e em muitos outros lugares) desde antes, mas principalmente a partir dos Modernismos – reunidos ou não em torno de uma revista, como foi o caso de Orpheu, em Portugal e Klaxon, no Brasil. Colaborações entre artistas da palavra, do traço, da cor. Alguns poetas aparecem, também, como artistas plásticos e estes como poetas, nos vários momentos: é o caso de Almada-Negreiros, Lenora de Barros, Willys de Castro, Tadeu Jungle, Melo e Castro, Arnaldo Antunes, Fernando Aguiar, Ana Hatherly, Emerenciano, António Nelos, por exemplo, mostrando, quando não a ruptura de fronteiras entre as Artes, a elasticidade das mesmas. E houve artistas plásticos que até poderiam ser chamados de poetas visuais, já que cumularam de grafismos, alfabéticos ou não, os seus trabalhos. No Brasil, poderíamos citar Wesley Duke Lee, Ubirajara Ribeiro, Mira Schendel, Rubens Gerchman, e o mais-que-admirável Arthur Bispo do Rosário, com suas peculiaridades. Em Portugal temos como autor das capas de Poesia Experimental 1 e 2 Ilídio Ribeiro. João Vieira foi o autor das capas de Hidra 1 e Operação 1. Hidra 2 teve capa e projeto gráfico a cargo de Melo e Castro, que pode, além de poeta, ser considerado um artista plástico de linha construtiva. Poetas como Décio Pignatari e Augusto de Campos tiveram importante papel em planejamento gráfico e elaboração de capas. Pignatari, grande olho (tipo) gráfico é autor da capa de Noigandres 1 e de algumas outras que ficaram na história, como a do livro Um e Dois, de José Lino Grünewald e o das traduções de Cantares de Ezra Pound, além de projetos gráficos de livros inteiros, como o Soma, de Edgard Braga. As capas de Invenção, que repetem o desenho da de nº 1, com variação de cor, também são ideia de Décio Pignatari. Noigandres 4 (1958) teve capa de Hermelindo Fiaminghi, tendo sido executada pelo próprio artista, em serigrafia – Fiaminghi teve, também, grande participação na preparação gráfica de poemas para exposições. Alfredo Volpi (1896-1988), um artista nascido em Lucca, Itália, mas desde criança morando no Brasil, era uma unanimidade entre artistas plásticos e poetas: teve um seu trabalho reproduzido de modo aproximado na capa de Noigandres 5 e foi apontado pelos poetas como “o primeiro e último pintor brasileiro”. Volpi, chegou a financiar várias edições autônomas de poemas de seu amigo Ronaldo Azeredo. Alexandre Wollner (1928-), artista plástico e designer visual, que estudou na Hochschule für Gestaltung, e que é autor dos cartazes da 3ª e 4ª Bienais de São Paulo, foi o planejador gráfico da página “Invenção”, no Correio Paulistano (de janeiro de 1960 a fevereiro de 1961). Houve, de facto, desde os anos 50, uma aproximação, que continuará nos 70, a qual, além dos concretos históricos (sempre a produzir), incluirá os “intersemióticos” e afins, das novas gerações.

§

Julio Plaza (1938-2003), espanhol chegado ao Brasil na 2ª metade dos anos 1960 e que rumou para Porto Rico, onde ficou, acompanhado da esposa, a artista plástica Regina Silveira, por alguns anos, acabou por se radicar em São Paulo, na 1ª metade dos anos 1970. Num certo período, Julio Plaza – podemos dizer – mais aprendeu que ensinou, ele que possuía um know-how invejável em termos de métodos e técnicas em artes plásticas/gráficas e se interessou por Poesia, a que especificamente já era praticada em São Paulo, desde os anos 1950, época do nascimento da Poesia Concreta, que muito evoluiu e se transformou com o passar do tempo, além dos projetos individuais que se foram configurando, como o de Galáxias (1963/64-1976), de Haroldo de Campos, por exemplo. Julio Plaza, em fins dos anos 1960, na oficina de Julio Pacello, havia editado Objetos, livro-de-artista constituído de pranchas que se abrem e deixam configurar formas-cores, e para o qual Augusto de Campos, solicitado, fez um poema que se integrou a um dos “objetos” – e não uma apresentação, como se haveria de esperar – obra esta que desembocaria em Poemóbiles. Na volta de Porto Rico (1973) e seu estabelecimento na cidade de São Paulo, Julio Plaza se associa a Augusto de Campos, donde brotará um trabalho importantíssimo para a Poesia, as Artes Plásticas e as Artes Gráficas do Brasil: Poemóbiles, 1974, cuja 1ª edição foi por eles mesmos custeada (houve + duas edições dessa obra), Caixa Preta, 1975, constituída de poemas de Augusto de Campos e trabalhos de Julio Plaza, sendo alguns em colaboração e além disso, constava um disco, um compacto simples, 33 RPM, com a oralização (-musicalização) de dois poemas de Augusto de Campos por Caetano Veloso. Em 1976, saiu o ReDuchamp, livro com texto de Augusto de Campos sobre Marcel Duchamp, com imagens elaboradas por Julio Plaza. Um quarto trabalho, que partiria de trechos do “Inferno de Wall Street”, de Sousândrade, chegou a ser pensado e iniciado, mas não prosseguiu. Plaza trabalhou com planejamento gráfico e diagramação, fez capas de livros, cartazes de exposições etc. Fez importantes curadorias, como a da Arte Postal, na 16ª Bienal de São Paulo, em 1981 e a de Videotexto na 17ª, participou de projetos do MAC-USP, na época em que foi diretor o grande crítico e promoter Walter Zanini. Foi professor na FAAP e na ECA-USP, onde ajudou a formar muitos artistas, hoje importantes. Do 2º semestre de 1978 ao 1º de 1981, esteve, com Regina Silveira, Donato Ferrari e Walter Zanini, à frente de um Centro de Estudos: o ASTER, por onde passaram muitos importantes artistas plásticos e poetas e intelectuais, com cursos de curta duração, espécie de “escola dos sonhos”, mas, dada a área em que veio a se localizar (Bairro das Perdizes, São Paulo), zona então puramente residencial, enfrentou dificuldades e teve de fechar. Fez uma exposição nos 70, que foi das melhores coisas que São Paulo já viu: LO(A)S MENINO(A)S, em que dialogou com Velázquez. De artista de linha construtiva, para artista conceitual, poeta intersemiótico, teórico, a pesquisador das novas tecnologias, Plaza não quis, a partir de um certo momento, diálogo com galerias e críticos e praticamente se isolou, dedicando-se ao ensino, a seu trabalho com novas mídias e à nova família que veio a constituir. Sua competência gráfica foi algo notório e notável. Do seu maravilhamento pelas palavras, nasceram vários trabalhos, no limite mesmo entre Poesia e Artes Plásticas, trabalhos estes em que explorou paronomásias, palíndromos etc. Plaza, além de ter feito planejamento gráfico de algumas importantes revistas, como Qorpo Estranho e Através, esteve presente com trabalhos, quase-sempre inéditos, em revistas que estiveram à margem do sistema editorial brasileiro, como Código, Qorpo Estranho, Artéria, Zero à Esquerda e outras. Viabilizador de projetos, Julio Plaza está ligado, além dos já citados, a edições de trabalhos, como os livros de poemas de Décio Pignatari (Poesia Pois É Poesia) e Augusto de Campos (Viva Vaia), por editora comercial (Duas Cidades) e o livro-objeto Oxigênesis, edição de autor (STRIP), de Villari Herrmann. Esteve à frente de trabalhos em Videotexto (Arte pelo Telefone), de onde saiu sua dissertação de Mestrado. Teorizou sobre livro-de-artista e arte e tecnologia, porém, seu texto teórico mais conhecido é o Tradução Intersemiótica em que, partindo da sugestão de Roman Jakobson, desenvolve sua tese de Doutorado, aplicando a Semiótica peirceana. Julio Plaza foi dessas ótimas aquisições que o Brasil fez de gente de fora. Plaza conta com excelente companhia: Giovanni Castagneto, Eliseu Visconti, Lasar Segall, Grigori Warchavchik, Alfredo Volpi, Clarice Lispector, Hans-Joachim Koellreutter, Ernesto de Fiore, Frans Weissmann, Tomie Ohtake, Manabu Mabe, Yoshiya Takaoka, Joaquim Tenreiro, Lothar Charoux, Kazmer Féjer, Mira Schendel, Fernando Lemos… País de imigração, muita gente de fora, dedicada às artes, radicou-se no Brasil.

§

Um belo livro dos anos 1920, no Brasil, foi o Pathé Baby (1926), de Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) – [A. de A. Machado. Pathé Baby. Edição fac-similar. São Paulo: Secretaria Estadual da Cultura, 1982.] O livro traz prefácio de Oswald de Andrade, o que é bem sintomático, pois é uma espécie de filho da prosa oswaldiana, que havia se configurado em 1923-24, com o Memórias sentimentais de João Miramar, mas difere, primeiramente porque é menos concisa, sem deixar de sê-lo e, em segundo, porque o livro-em-si forma um todo, de par com o que de gráfico nele comparece: da tipografia às ilustrações, perfeitamente integradas ao texto, de Antônio Paim Vieira (1895-1988), um artista plástico que, de viés, havia participado da Semana de Arte Moderna de 1922, ao lado do historiador e trocista Yan de Almeida Prado. E tudo se relaciona com Cinema, a começar pelo título da obra: Pathé Baby era o nome de um projetor de filmes de 9,5 mm e o livro, motivado por anterior viagem de Alcântara Machado à Europa, apresenta-se inteiro relacionado ao Cinema, e os desenhos de Paim Vieira abordam uma tela de cinema e um conjunto musical abrindo cada secção do livro (anunciando as sessões), sendo que modificações vão sendo observadas até ao final. O texto é primoroso enquanto composição, em grande parte, paratática, o que faz com que aquela prosa se aproxime da poesia. Alcântara Machado chega a fazer parte da equipe que levou adiante a Revista de Antropofagia, a mais radical das revistas de nosso 1º Modernismo. Sua principal obra, porém, é o internacionalista Pathé Baby e não outros textos em que pinta histórias que se passam na Pauliceia. Muito já se disse que o Cinema havia ficado (como ficou) fora da Semana de 22 – explicação plausível não é difícil de se dar: simplesmente não havia pessoas ligadas a cinema entre os que planejaram e participaram da Semana, mas a arte da Cinematografia (que nasceu na efervescência da virada do século XIX para o XX e que já levava multidões às salas) era muitíssimo apreciada por todos, e o seu elogio comparece no Editorial do nº 1 de Klaxon. O livro Pathé Baby não contou muito com consideração por parte dos concretistas, já que havia maior radicalidade, além da anterioridade, na obra de Oswald de Andrade, mas penso que deva ser apontado como um passo importante para a valorização da coisa gráfica no Brasil (é também considerado o melhor trabalho de Paim Vieira, que não era propriamente um modernista) e do livro em colaboração inteiro (como já vinha acontecendo), como que antecipando essa prática do “livro-de-artista” e apresentando relação inclusive com a poesia intersemiótica. Leiam-se os textos de Valêncio Xavier, sobre o Pathé Baby, Valêncio (1933-2008) – um experimentador da prosa, autor do romance-invenção O mez da gripe – na revista Cult 47: “Cinema escrito”. Também, o texto “A grafia imagética de Antônio de Alcântara Machado”, da escritora e crítica de literatura Neiva Pitta Kadota, na revista FACOM 10. É preciso rever Antônio de Alcântara Machado, via Pathé Baby, um belo livro modernista.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

18. As Origens da Poesia Experimental em Portugal.

Pesquisando em fontes primárias, em bibliografia e contando com depoimentos de protagonistas da Poesia Experimental, certifiquei-me de que, além de questões não tão bem assentadas sobre quem deu o start para tal processo, há discordâncias não-conflituosas quanto à motivação primeira, quanto à fonte de onde foram hauridas informações que iriam resultar no movimento português. O Além-Mar, onde se situa o Brasil, com o Grupo Noigandres (e outras americanidades não cultuadas por uma e outra ala dos iniciadores do processo, com relação ao estadunidense Ezra Pound que, de qualquer modo, terá alguma influência sobre toda a Poesia que se segue a ele no século XX, direta ou indiretamente), ou a própria Europa, tendo o suíço-boliviano Eugen Gomringer como figura maior? Dúvida não há quanto ao papel de grande divulgador dessa poética experimental (a Poesia Concreta e seus desdobramentos) que foi Ernesto Manuel de Melo e Castro (1932-), figura onipresente no desenrolar do processo, durante décadas. Vamos nos ater, neste texto, a falas ou escritos de protagonistas.

No catálogo da representação portuguesa à XIV Bienal de São Paulo, em 1977, há um texto histórico-crítico de E. M. de Melo e Castro, que apresenta a “Poesia Experimental Portuguesa”, texto que é reproduzido em A. Hatherly e Melo e Castro (org.) PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editores, 1981, p. 9-10:

“Quase toda a Poesia Experimental Portuguesa produzida a partir do início da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de POESIA ESPACIAL, uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes. De facto foi e é no campo das experiências visuais e espaciais do texto, considerando como matéria substantiva de que o poema se produz, que a pesquisa morfológica, fonética, sintáctica e semiológica se projectou e projecta.

“Dois acontecimentos antecedem o aparecimento em Portugal de manifestações originais da Poesia Experimental: primeiro, a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956 (sem resultados significativos) após o seu já histórico encontro com Gomringer; segundo, a publicação em 1962, pela Embaixada do Brasil em Lisboa, de uma pequena mas excelente compilação de Poesia Concreta do Grupo Noigandres – São Paulo – Brasil (ano em que eu próprio publico IDEOGRAMAS, reunindo poemas de 1961).

“Em Portugal nunca houve, no entanto um grupo organizado de poetas concretos, tendo a Poesia Concreta interessado a determinados poetas em determinada altura, como via de alargamento da sua pesquisa morfossemântica. Assim, podem até assinalar-se exemplos esporádicos de poemas com uma coordenada visual, ou com uma organização na página, tanto em Mário Cesariny de Vasconcelos como em Jaime Salazar Sampaio ou em Alexandre O’Neill, na década de 50. Mas é o Experimental da Década de 60 que virá a ser propriamente criativo, e servindo até (centrando-se em Lisboa) de Difusor da Poesia Concreta, principalmente para o Reino Unido”…

Augusto de Campos (1931-), em e-mail de 18.08.2015, respondendo à minha pergunta sobre Alberto da Costa e Silva e a antologia Poesia Concreta, escreveu-me:

“A antologia foi editada por iniciativa do Alberto da Costa e Silva, então Secretário da Embaixada. Ele já havia publicado, anteriormente, uma antologia grande sobre a poesia brasileira. A publicação da antologia de p.c. em 62 foi muito importante, porque provocou o interesse de Melo e Castro  e dos poetas que vieram a integrar a Poesia Experimental portuguesa.  Uma carta dele ao Times Literary Supplement suscitou, por sua vez, o interesse dos britânicos. O escocês Ian Hamilton Finlay me escreveu convidando-me para colaborar no seu jornal literário, menos que uma little magazine, um tablóide de poucas páginas, e aí começou o contacto com outros como Stephen Bann, Edwin Morgan e que acabou resultando nas primeiras exposições de p.c. no Reino Unido, na publicação dos brasileiros no Times Literary Supplement, em setembro de 1964, etc etc. Longa história.”

É célebre a carta que Melo e Castro enviou e que foi publicada no Times Literary Supplement, de 25 de maio de 1962 (original em inglês, traduzido pelo Autor), reproduzida à página 216 de PO.EX…, obra supra-citada:

Poesia, Prosa e a Máquina

Sr. Diretor

Li com muito interesse o artigo “Poesia, Prosa e a Máquina” de um correspondente especial publicado no número de 4 maio do seu jornal, mas não posso deixar de ficar surpreendido por ele não ter mencionado o cada vez mais importante movimento da Poesia Concreta que, sendo oriundo do Brasi,l chega agora a Portugal. De facto, a Poesia Concreta é uma bem sucedida experiência de escrita ideogramática ou diagramática e também de criação poética precisamente nas linhas referidas pelo correspondente.

Este tipo de experiência propõe-se substituir o método tradicional da comunicação descritiva por um modo visual compacto e ideogramático de criar e comunicar relações complexas e subtis entre ideias, imagens, palavras, coisas, etc. A Poesia Concreta está a despertar uma onda de interesse tanto no Brasil como em Portugal especialmente entre os jovens e os mais avançados poetas.

E. M. de Melo e Castro

 

Também protagonista, Ana Hatherly (1929-2015), além de poeta e artista plástica, fez importantes pesquisas sobre a origem remota da visualidade na Poesia Lusa e possui inúmeros escritos que tratam dessa história:

“A simultaneidade do seu aparecimento [da Poesia Concreta] – com Gomringer na Europa e o Grupo Noigandres no Brasil – embora o seu acordo básico nos pontos fundamentais, assumindo como antecessor o ‘Coup de Dés’ de Mallarmé, as teorias de Fenollosa e Pound sobre o ideograma chinês e ainda a Teoria da Informação, as técnicas de comunicação de massa, teorias científico-matemáticas, etc., há diferenças entre estes dois polos e são elas que vão depois dar origem aos diversos caminhos que seguiram outros praticantes e teorizadores da poesia concreta.

“Enquanto no grupo brasileiro, que em Portugal influencia particularmente o trabalho de E. M. de Melo e Castro, se torna saliente a infiltração do lirismo do ideograma e a fidelidade aos princípios de Mallarmé, com sua particular incidência nos aspectos da espacialização do texto e a sua relação com a música, que vem tornar o poema uma autêntica partitura, na Europa, a influência das artes plásticas, sobretudo via Bauhaus, é mais forte. Não esqueçamos que Gomringer foi secretario de Max Bill e que a influência que a arte de vanguarda post-cubista exerceu nos diversos campos de criação artística foi decisiva. Assim, enquanto o grupo brasileiro, que possuía talvez menor vocação gráfica, evoluiu de um lirismo-cientista até atingir a crítica social e a sátira (tendência de certo modo herdada, com o idioma, da veia lusitana do escárnio e maldizer), acabando por assimilar alguns aspectos da Pop-Art, para os concretistas europeus, sobretudo os germânicos e os anglo-saxões, a importância do aspecto formalmente visual acaba por impor-se e até sobrepor-se ao aspecto literário, com ramificações importantes para a exploração das zonas fónicas da língua, reatando assim com a tradição de vanguarda (embora estes termos possam parecer incompatíveis) em que língua, som, imagem se confundem, derrubando declaradamente as fronteiras entre as artes.

“Nessa linha europeia se inscrevem mais nitidamente os meus próprios trabalhos, culminando com ‘Mapas da Imaginação e da Memória’ e ‘O Escritor’, mas das obras dos concretistas e para-concretistas portugueses falei extensamente no ensaio intitulado ‘Elementos para uma Investigação da Poesia Experimental nos anos 60/70’.” […] “Quando em 1959 publiquei no Suplemento ‘Artes e Letras’ do Diário de Notícias de Lisboa, o primeiro artigo crítico sobre a poesia concreta e também o primeiro poema concreto dum autor português que se publicava entre nós…” […] (Ana Hatherly. A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido 19 textos visuais. Lisboa: Editorial Futura, 1975, p. 14-15.)

O texto de Ana Hatherly, publicado no Diário de Notícias de Lisboa, em 17.09.1959, traz reproduzidos 3 poemas, sendo o terceiro considerado o 1º poema concreto português. Acontece que, na referida publicação, o poema saiu desformatado, sendo que a sua forma original foi recuperada apenas bem posteriormente, assim como o artigo não teve quase repercussão no momento em que foi dado a público.

Ana Hatherly e alguns estudiosos posteriores costumam colocar Melo e Castro como seguidor do “grupo brasileiro” e ele nunca, ao que me consta, contestou tal afirmação publicamente. Pelo contrário: em diversas ocasiões chamou a atenção para a importância que tiveram os brasileiros do Grupo Noigandres para a emergência da Poesia Experimental portuguesa e manteve contato com os poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, mas principalmente com este último, com quem manteve correspondência epistolar. Penso que Melo e Castro, na sua exuberância enquanto produtor de linguagem, prolífico poeta, um dos grandes experimentadores da poesia mundial do século XX e adentrando o XXI, enxergou, de cara, as afinidades que existiam entre o racionalismo exacerbado do Trio Noigandres e o seu, com sua formação como engenheiro têxtil, assim como percebeu o aguçado senso gráfico daqueles poetas, que vinham de uma cidade efervescente que era e ainda é São Paulo de Piratininga. Prova de seu cerebralismo é o magnífico Soneto Soma 14 X, que é datado da 1ª metade dos anos ’50, mas que foi publicado apenas em 1963 (e é esta a data que conta), em seu livro Poligonia do Soneto, à página 38 (Lisboa: Guimarães Editores, 1963). Soneto que parodia toda a tradição do soneto, enquanto forma fixa de grande sucesso e das preferências da Lírica – e o homenageia, pois toda paródia acaba por elevar a o objeto parodiado. Vem a ser dos mais importantes sonetos-anti-soneto produzidos em 100 anos. Na secura numérica, tal como se apresenta, dialoga com o Fisches Nachtgesang (Canto Noturno do Peixe), do início do século XX, de Christian Morgenstern, que constrói a peça com a utilização, rigidamente estruturada, do macro e da bráquia (sinais gráficos que indicam vogal longa ou breve). Melo e Castro, figura onipresente no Experimentalismo português, acabou por seguir, e durante décadas de produção, sem descair, caminho próprio. Além de poeta, teórico/crítico e promoter, foi um dos responsáveis pela divulgação do Movimento da Poesia Concreta, principalmente no Reino Unido, como ele-mesmo admite. A internacionalização esteve no centro das cogitações da Poesia Concreta/Experimental.

Melo e Castro e Ana Hatherly não são os únicos, mas vêm a ser os mais aplicados críticos e estudiosos de Poesia dentre os Experimentais históricos de Portugal, os mais brilhantes e prolíficos. Ela mais didática, ele mais técnico, ambos, de suma importância enquanto poetas e teóricos.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

17. Anotações às Margens do Tejo: I.

O Tejo pode não ser mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo é o TEJO! Quem lê ou ouve uma única vez o poema de Pessoa/Caeiro, nunca mais o esquece e talvez venha a compreender que a Poesia “fala” uma língua especial, mesmo que a mesma. Poesia: a mais elevada forma de expressão verbal, ao mesmo tempo em que pode vir a ser a mais parcimoniosa. A Poesia, quebra as fronteiras do verbal e adentra outros códigos, mesmo sem sair do verbal. A Poesia pode ir além do verso, além do verbo e até configurar-se sem palavras. A poesia fala o inefável.

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Ainda não bem me conscientizei de que estou à beira do Tejo… precisamente à margem direita do Rio, que é onde se situa Lisboa, de longínqua origem fenícia e que abraça, acaricia, não sufoca, não agride o Curso d’Água. Justamente nesta margem direita nasceu e, depois de uma certa ausência, voltou a habitá-la Fernando António Nogueira Pessoa, o Fernando Pessoa, o Pessoa que hoje repousa nos Jerônimos e que, representado em bronze faz a alegria de turistas que se querem fotografar ao seu lado, ali, em frente à A Brasileira do Chiado, à Rua Garrett, um café que era frequentado pela 1ª geração de modernistas portugueses, geração esta que fez a Orpheu, seus 2 números, no ano de 1915. O homem Pessoa produziu sua grande e múltipla obra nesta margem direita do Tejo. Como alguém ainda se atreve a escrever às margens do Tejo? Junto à margem direita do Tejo? Quem o saberá? Um talvez residual de energia…

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Se não impossível, ficou difícil escrever poemas em Português depois da passagem de Fernando Pessoa por essas Bandas. Penso que a superação, de facto, dessa questão se deu com o Experimentalismo na Poesia Lusa, a partir dos anos 1960, caracterizado pelas incursões intersemióticas, multi e intermidiáticas e o seu cada vez maior internacionalismo.

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Exemplifiquei Fanopéia na Poesia Lusa… e prometi algo da brasileira. Porém, gostaria de estampar, aqui, duas peças-prodígio da Poesia em Língua Portuguesa, onde a festa é feita do encontro de Melopeia com Logopeia, uma da primeira metade do século XVI e outra da segunda do XX, mas que, em essência “tratam” do problema do EU: 1. Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) e 2. Antonio Risério (1953-):

1.

Comigo me desavim
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor da gente fugia,
Antes que assi crecesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho inimigo de mim?

2.

POR MAIS QUE EU TENTE PÔR MENOS

DE MIM HÁ DEMAIS NESSE TALVEZ

E NEM SEI O QUE SEJA HAVER

DEMAIS DE MIM NUMA VEZ TAL

QUE VOZ NÃO TEM OU ENTÃO SOA

AQUÉM E ALÉM DA LENDA QUE SOU

 

E, como prêmio, a célebre 1ª quadra da AUTOPSICOGRAFIA, de Fernando Pessoa, perpassada pela música e minada por armadilhas verbais:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

[…]

E agora, o fenômeno fanopaico no Modernismo Brasileiro de: A. Oswald de Andrade (1890-1954), B. Manuel Bandeira (1886-1968) e C. Guilherme de Almeida (1890-1969):

A.

LONGO DA LINHA

 Coqueiros

Aos dois

Aos três

Aos grupos

Altos

Baixos

B.

A Realidade e a Imagem

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.

 C.

 MORMAÇO

Calor. E as ventarolas das palmeiras
e os leques das bananeiras
abanam devagar
inutilmente na luz perpendicular.
Todas as coisas são mais reais, são mais humanas:
não há borboletas azuis nem rolas líricas.
Apenas as taturanas
escorrem quase líquidas
na relva que estala como um esmalte.
E longe uma última romântica
— uma araponga metálica — bate
o bico de bronze na atmosfera timpânica.

§

Mínima é a presença de mulheres na poesia mais experimental do Brasil, Poesia Concreta, melhor dizendo (e a razão disto, se é que alguma há, deve ser averiguada entre as poetas [as mulheres], não entre os protagonistas do Concretismo brasileiro, que agora conta apenas com Augusto de Campos). Em Invenção 5 (1966-67) aparece Meretrilho, um poema admirável de Maria do Carmo Ferreira, poeta mineira que depois fez algumas raras aparições, com peças igualmente belas (nesses anos todos, não consegui localizá-la no Brasil. Num certo tempo, chegou a se corresponder com Samira Chalhub, que soube dela por intermédio de Décio Pignatari, que deu dela ótimas referências enquanto poeta – na época, e lá se vão uns 20 anos, ela elaborava papéis de carta e envelopes, com a técnica da colagem, e devo ter, ainda, um ou dois, de cartas que recebi de Samira). Mais recentemente, a partir dos anos 1970, surge a figura fortíssima de Lenora de Barros, que trilha entre a Poesia, propriamente, e as Artes Visuais, mas com grande domínio do verbo. Diferentemente, em Portugal, colocam-se com força, desde o início da Poesia Experimental, figuras como Salette Tavares e Ana Hatherly, além de outras que se seguem, mas cujo trabalho não teve a continuidade que teve o das primeiras. Já no Concretismo pictórico e no tridimensional, no Brasil, aparecem figuras de suma importância, tanto na “ala” paulista, como na “ala” carioca: Judith Lauand (1922-), Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004) e, ainda, Mary Vieira (1927-2001). Tivemos, em nosso Primeiro Modernismo duas figuras fundamentais na Pintura, que foram Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, além de outras artistas cuja obra não teve a mesma repercussão. A portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) desenvolveu uma importante obra, em grande parte fora de Portugal, tendo, inclusive, morado no Brasil nos anos 1940. Grandes artistas mulheres atuaram nas vanguardas do 1º Modernismo e, na Rússia, aparecem muitos nomes, com trabalho admirável (Augusto de Campos as nomeia em poema-homenagem a Judith Lauand, em época mais ou menos recente), além daquelas que atuaram no Ocidente, como a ucraniana Sonia Delaunay-Terk (1885-1979), que teve passagem por Portugal, durante a 1ª Grande Guerra. No ano de 1913, havia colaborado, executando nos exemplares do livro desdobrável de Blaise Cendrars – La prose du transsibérien et de la petite Jehanne de France – suas “cores simultâneas”.

 Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz