Pesquisando em fontes primárias, em bibliografia e contando com depoimentos de protagonistas da Poesia Experimental, certifiquei-me de que, além de questões não tão bem assentadas sobre quem deu o start para tal processo, há discordâncias não-conflituosas quanto à motivação primeira, quanto à fonte de onde foram hauridas informações que iriam resultar no movimento português. O Além-Mar, onde se situa o Brasil, com o Grupo Noigandres (e outras americanidades não cultuadas por uma e outra ala dos iniciadores do processo, com relação ao estadunidense Ezra Pound que, de qualquer modo, terá alguma influência sobre toda a Poesia que se segue a ele no século XX, direta ou indiretamente), ou a própria Europa, tendo o suíço-boliviano Eugen Gomringer como figura maior? Dúvida não há quanto ao papel de grande divulgador dessa poética experimental (a Poesia Concreta e seus desdobramentos) que foi Ernesto Manuel de Melo e Castro (1932-), figura onipresente no desenrolar do processo, durante décadas. Vamos nos ater, neste texto, a falas ou escritos de protagonistas.
No catálogo da representação portuguesa à XIV Bienal de São Paulo, em 1977, há um texto histórico-crítico de E. M. de Melo e Castro, que apresenta a “Poesia Experimental Portuguesa”, texto que é reproduzido em A. Hatherly e Melo e Castro (org.) PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editores, 1981, p. 9-10:
“Quase toda a Poesia Experimental Portuguesa produzida a partir do início da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de POESIA ESPACIAL, uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes. De facto foi e é no campo das experiências visuais e espaciais do texto, considerando como matéria substantiva de que o poema se produz, que a pesquisa morfológica, fonética, sintáctica e semiológica se projectou e projecta.
“Dois acontecimentos antecedem o aparecimento em Portugal de manifestações originais da Poesia Experimental: primeiro, a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956 (sem resultados significativos) após o seu já histórico encontro com Gomringer; segundo, a publicação em 1962, pela Embaixada do Brasil em Lisboa, de uma pequena mas excelente compilação de Poesia Concreta do Grupo Noigandres – São Paulo – Brasil (ano em que eu próprio publico IDEOGRAMAS, reunindo poemas de 1961).
“Em Portugal nunca houve, no entanto um grupo organizado de poetas concretos, tendo a Poesia Concreta interessado a determinados poetas em determinada altura, como via de alargamento da sua pesquisa morfossemântica. Assim, podem até assinalar-se exemplos esporádicos de poemas com uma coordenada visual, ou com uma organização na página, tanto em Mário Cesariny de Vasconcelos como em Jaime Salazar Sampaio ou em Alexandre O’Neill, na década de 50. Mas é o Experimental da Década de 60 que virá a ser propriamente criativo, e servindo até (centrando-se em Lisboa) de Difusor da Poesia Concreta, principalmente para o Reino Unido”…
Augusto de Campos (1931-), em e-mail de 18.08.2015, respondendo à minha pergunta sobre Alberto da Costa e Silva e a antologia Poesia Concreta, escreveu-me:
“A antologia foi editada por iniciativa do Alberto da Costa e Silva, então Secretário da Embaixada. Ele já havia publicado, anteriormente, uma antologia grande sobre a poesia brasileira. A publicação da antologia de p.c. em 62 foi muito importante, porque provocou o interesse de Melo e Castro e dos poetas que vieram a integrar a Poesia Experimental portuguesa. Uma carta dele ao Times Literary Supplement suscitou, por sua vez, o interesse dos britânicos. O escocês Ian Hamilton Finlay me escreveu convidando-me para colaborar no seu jornal literário, menos que uma little magazine, um tablóide de poucas páginas, e aí começou o contacto com outros como Stephen Bann, Edwin Morgan e que acabou resultando nas primeiras exposições de p.c. no Reino Unido, na publicação dos brasileiros no Times Literary Supplement, em setembro de 1964, etc etc. Longa história.”
É célebre a carta que Melo e Castro enviou e que foi publicada no Times Literary Supplement, de 25 de maio de 1962 (original em inglês, traduzido pelo Autor), reproduzida à página 216 de PO.EX…, obra supra-citada:
Poesia, Prosa e a Máquina
Sr. Diretor
Li com muito interesse o artigo “Poesia, Prosa e a Máquina” de um correspondente especial publicado no número de 4 maio do seu jornal, mas não posso deixar de ficar surpreendido por ele não ter mencionado o cada vez mais importante movimento da Poesia Concreta que, sendo oriundo do Brasi,l chega agora a Portugal. De facto, a Poesia Concreta é uma bem sucedida experiência de escrita ideogramática ou diagramática e também de criação poética precisamente nas linhas referidas pelo correspondente.
Este tipo de experiência propõe-se substituir o método tradicional da comunicação descritiva por um modo visual compacto e ideogramático de criar e comunicar relações complexas e subtis entre ideias, imagens, palavras, coisas, etc. A Poesia Concreta está a despertar uma onda de interesse tanto no Brasil como em Portugal especialmente entre os jovens e os mais avançados poetas.
E. M. de Melo e Castro
Também protagonista, Ana Hatherly (1929-2015), além de poeta e artista plástica, fez importantes pesquisas sobre a origem remota da visualidade na Poesia Lusa e possui inúmeros escritos que tratam dessa história:
“A simultaneidade do seu aparecimento [da Poesia Concreta] – com Gomringer na Europa e o Grupo Noigandres no Brasil – embora o seu acordo básico nos pontos fundamentais, assumindo como antecessor o ‘Coup de Dés’ de Mallarmé, as teorias de Fenollosa e Pound sobre o ideograma chinês e ainda a Teoria da Informação, as técnicas de comunicação de massa, teorias científico-matemáticas, etc., há diferenças entre estes dois polos e são elas que vão depois dar origem aos diversos caminhos que seguiram outros praticantes e teorizadores da poesia concreta.
“Enquanto no grupo brasileiro, que em Portugal influencia particularmente o trabalho de E. M. de Melo e Castro, se torna saliente a infiltração do lirismo do ideograma e a fidelidade aos princípios de Mallarmé, com sua particular incidência nos aspectos da espacialização do texto e a sua relação com a música, que vem tornar o poema uma autêntica partitura, na Europa, a influência das artes plásticas, sobretudo via Bauhaus, é mais forte. Não esqueçamos que Gomringer foi secretario de Max Bill e que a influência que a arte de vanguarda post-cubista exerceu nos diversos campos de criação artística foi decisiva. Assim, enquanto o grupo brasileiro, que possuía talvez menor vocação gráfica, evoluiu de um lirismo-cientista até atingir a crítica social e a sátira (tendência de certo modo herdada, com o idioma, da veia lusitana do escárnio e maldizer), acabando por assimilar alguns aspectos da Pop-Art, para os concretistas europeus, sobretudo os germânicos e os anglo-saxões, a importância do aspecto formalmente visual acaba por impor-se e até sobrepor-se ao aspecto literário, com ramificações importantes para a exploração das zonas fónicas da língua, reatando assim com a tradição de vanguarda (embora estes termos possam parecer incompatíveis) em que língua, som, imagem se confundem, derrubando declaradamente as fronteiras entre as artes.
“Nessa linha europeia se inscrevem mais nitidamente os meus próprios trabalhos, culminando com ‘Mapas da Imaginação e da Memória’ e ‘O Escritor’, mas das obras dos concretistas e para-concretistas portugueses falei extensamente no ensaio intitulado ‘Elementos para uma Investigação da Poesia Experimental nos anos 60/70’.” […] “Quando em 1959 publiquei no Suplemento ‘Artes e Letras’ do Diário de Notícias de Lisboa, o primeiro artigo crítico sobre a poesia concreta e também o primeiro poema concreto dum autor português que se publicava entre nós…” […] (Ana Hatherly. A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido 19 textos visuais. Lisboa: Editorial Futura, 1975, p. 14-15.)
O texto de Ana Hatherly, publicado no Diário de Notícias de Lisboa, em 17.09.1959, traz reproduzidos 3 poemas, sendo o terceiro considerado o 1º poema concreto português. Acontece que, na referida publicação, o poema saiu desformatado, sendo que a sua forma original foi recuperada apenas bem posteriormente, assim como o artigo não teve quase repercussão no momento em que foi dado a público.
Ana Hatherly e alguns estudiosos posteriores costumam colocar Melo e Castro como seguidor do “grupo brasileiro” e ele nunca, ao que me consta, contestou tal afirmação publicamente. Pelo contrário: em diversas ocasiões chamou a atenção para a importância que tiveram os brasileiros do Grupo Noigandres para a emergência da Poesia Experimental portuguesa e manteve contato com os poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, mas principalmente com este último, com quem manteve correspondência epistolar. Penso que Melo e Castro, na sua exuberância enquanto produtor de linguagem, prolífico poeta, um dos grandes experimentadores da poesia mundial do século XX e adentrando o XXI, enxergou, de cara, as afinidades que existiam entre o racionalismo exacerbado do Trio Noigandres e o seu, com sua formação como engenheiro têxtil, assim como percebeu o aguçado senso gráfico daqueles poetas, que vinham de uma cidade efervescente que era e ainda é São Paulo de Piratininga. Prova de seu cerebralismo é o magnífico Soneto Soma 14 X, que é datado da 1ª metade dos anos ’50, mas que foi publicado apenas em 1963 (e é esta a data que conta), em seu livro Poligonia do Soneto, à página 38 (Lisboa: Guimarães Editores, 1963). Soneto que parodia toda a tradição do soneto, enquanto forma fixa de grande sucesso e das preferências da Lírica – e o homenageia, pois toda paródia acaba por elevar a o objeto parodiado. Vem a ser dos mais importantes sonetos-anti-soneto produzidos em 100 anos. Na secura numérica, tal como se apresenta, dialoga com o Fisches Nachtgesang (Canto Noturno do Peixe), do início do século XX, de Christian Morgenstern, que constrói a peça com a utilização, rigidamente estruturada, do macro e da bráquia (sinais gráficos que indicam vogal longa ou breve). Melo e Castro, figura onipresente no Experimentalismo português, acabou por seguir, e durante décadas de produção, sem descair, caminho próprio. Além de poeta, teórico/crítico e promoter, foi um dos responsáveis pela divulgação do Movimento da Poesia Concreta, principalmente no Reino Unido, como ele-mesmo admite. A internacionalização esteve no centro das cogitações da Poesia Concreta/Experimental.
Melo e Castro e Ana Hatherly não são os únicos, mas vêm a ser os mais aplicados críticos e estudiosos de Poesia dentre os Experimentais históricos de Portugal, os mais brilhantes e prolíficos. Ela mais didática, ele mais técnico, ambos, de suma importância enquanto poetas e teóricos.
Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz