Arquivos mensais: junho 2016

36. (De São Paulo de Piratininga) Aster: uma foto – 1980

Afora a documentação que guardei do Aster, a qual recebia pelo correio (eu residia, então, à Rua Dona Veridiana, 77, ap 103, Santa Cecília. São Paulo cap) ou em mãos, tenho ainda algumas fotos feitas em 1980, como a do Paulo  Miranda e Sonia Fontanezi, desfocada, tirada por mim com uma câmera rudimentar e que aborda os serígrafos segurando o rodo segmentado, que imprimia o azul e o vermelho da bandeira francesa a um só tempo e que foi pensado por Sonia Fontanezi, ideia aprovada por Paulo Miranda, que a realizou, para a impressão de seu trabalho La Vie En (1978) e do qual (-rodo) eu havia duvidado – Julio Plaza ficou espantado ao observar a façanha. O rodo já não mais existe, mas que funcionou, funcionou! E deu certo o imprimir cerca de 550 cópias da bandeira (sendo 500 para que fizessem parte de Zero À Esquerda), prevendo uma margem de erro (ou simplesmente cópias “não-satisfatórias”) de 10%, o que era demais, mas atendia ao perfeccionismo de Paulo, o Miranda. Nada escapava ao controle de qualidade do autor do soneto-fita-métrica, daí o excesso. Até Omar Guedes Abigalil, grande serígrafo, professor de serigrafia de Paulo e amigo de todos nós achava um exagero reprovar um trabalho, por exemplo, que tivesse um chapado e em que aparecia uma falhazinha, um pontinho branco! Ele dizia: “Retoque com uma hidrográfica e pronto.” Mas de nada adiantava. Outra foto interessante, cujo autor é Paulo Miranda (em verdade, tenho cópias reprográficas ruins da mesma, porém legíveis) é a de uma sessão no Aster em que imprimíamos o trabalho de Luiz Antônio de Figueiredo Exercício Cubista e que viria, também, a fazer parte de Zero À Esquerda. Feita, sim, pelo Paulo, que nela não aparece. A mesa de impressão com vácuo, varal contendo cópias do trabalho que está sendo impresso – em pé, Zéluiz Valero recebe uma cópia impressa e Carlos Valero, sentado, se prepara para me passar o papel em branco. Eu, ali, no momento, como impressor, papel que geralmente cabia a Paulo Miranda. Essa foi uma das raras vezes em que Zé e Carlos apareceram no Aster, durante a façanha de impressão de Zero À Esquerda. Era o ano de 1980 e a revista, que se recusou a ser Artéria, para que não houvesse repetição, teve o seu lançamento na discoteca Pauliceia Desvairada, em 6 de maio de 1981, com um espetáculo multimídia, de facto. Na foto, a disposição de nossas cabeças forma um triângulo obtusângulo, tendente ao retângulo. Está todo mundo no auge de suas forças e disposição e… bonito, daquela beleza que é própria dos jovens, muito embora os irmãos Valero-Figueiredo fossem mais bem apessoados que eu. Todos muito atentos no afazer enquanto são fotografados. Geralmente, eu cuidava de parte das gravações pelo processo fotográfico, retoques de matrizes, registro, preparo de tintas, controle do papel a ser impresso, limpeza das matrizes após trabalho de impressão. Mesmo depois de termos trabalhado o dia todo: eu, Paulo e também Sonia Fontanezi, era uma alegria essa labuta noturna no Aster. Havíamos sido alunos da escola, que não quis se chamar “escola”, mas Centro de Estudos: eu havia feito Litografia com Paulo Guedes, Paulo, serigrafia com Omar Guedes [serigrafia eu aprendi com Paulo Guedes, assistente de Miriam Chiaverini e por gentileza dela, na FAAP (1979) – à época, eu era professor dos meninos Ferrari:  Lorenzo, Igor e Cristiano, no Pequeno Príncipe] e mais, Paulo e Sonia fizeram um curso de Vídeo com o jovem Roberto Sandoval que, à época, namorava Renata de Barros [Padovan], e até chegaram, mesmo que à revelia, a participar, com um vídeo, numa Bienal de São Paulo, a XVI (1981). Utilizamos, com muita frequência, o Aster para os trabalhos que constariam de Zero À Esquerda, sendo que para isto pagávamos o que era chamado de “ateliê livre”, o que incluía até os sábados em que a assistente Cidinha ficava de plantão (a jovem deve ter sido aluna de Julio Plaza e Regina Silveira. Circunspecta, pouco falava, mas mostrou-nos um seu ‘poema’, que era assim: ela bela : belo elo e que consideramos muito bom). Eram quase sempre uma festa esses encontros gráficos e, em 1981, quando a revista foi ultimada, Walter Silveira e Tadeu Jungle realizaram um vídeo (há cópia deste trabalho – era a época de início da TVDO) que foi mostrado no lançamento de Zero À Esquerda. A montagem dos exemplares da revista aconteceu no apartamento do Paulo Miranda, à Rua Doutor Villanova, Vila Buarque (Centro). No mesmo ano de 1981, o Aster encerrou suas atividades. Uma pena o desfazimento do belo projeto de escola-de-arte, que não queria ser chamada de “escola”, dado o ranço que a palavra trazia consigo. Tendo funcionado de meados de 1978 a meados de 1981, o Aster foi um centro de estudos práticos e teóricos das Artes Visuais, tendo sido uma espécie de “escola dos sonhos”, norteada pelo rigor com liberdade. Muita gente incrível passou por lá: Julio Plaza, Regina Silveira, Walter Zanini, Donato Ferrari, Paulo Leminski, Décio Pignatari, Villem Flusser, Nélson Leirner, Milton Sogabe, Omar Guedes…

Sala principal do Centro de Estudos de Artes, o Aster, nas Perdizes, São Paulo. Zéluiz Valero, Omar Khouri e Carlos Valero [de Figueiredo] em plena sessão de impressão de trabalho de Luiz Antônio de Figueiredo, que constou de Zero À Esquerda, lançada em 1981. A fotografia, de Paulo Miranda, aqui reproduzida a partir de uma cópia xerox, é de 1980.
Sala principal (de impressão serigráfica) do Centro de Estudos de Artes, o Aster, nas Perdizes, São Paulo. Zéluiz Valero, Omar Khouri e Carlos Valero [de Figueiredo] em plena sessão de impressão de trabalho de Luiz Antônio de Figueiredo, que constou de Zero À Esquerda, lançada em 1981. A fotografia, de Paulo Miranda, aqui reproduzida a partir de uma cópia xerox, é de 1980.

 

35. (De São Paulo de Piratininga) Os dois maiores poetas vivos do Planeta residem em São Paulo

        Não, não se trata de um concurso, desses que se fazem aqui e ali para contemplar pessoas de áreas-mil. Tampouco de uma questiúncula para saber (ainda) quem é a favor ou contra o Concretismo no Brasil. É que, de repente, dei-me conta de que dois de meus amigos de longa data e com quem tenho cada vez menos contato são os maiores poetas-realizadores do Planeta Terra, e mais, residem em São Paulo e bem próximos de mim.
É impressionante pensar no múltiplo e gigantesco legado dos poetas concretos! (Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, principalmente, evitavam ou até mesmo nem permitiam a utilização do termo “concretista”, ou “concretismo”: sem “ismos”, diziam, pois a poesia era Concreta e os poetas, concretos – “a Grande Poesia sempre foi Concreta!” E, embora já muito modificada a Poesia Concreta, os poetas dessa tendência só vieram a admitir que o movimento era coisa encerrada, lá pelos fins dos anos de 1980, começos dos de 1990*. Haroldo de Campos chegou a dizer, em várias ocasiões que, fizesse o que fizesse – um soneto parnasiano, por exemplo – sempre seria chamado de concretista, teria de carregar a pecha para todo o sempre: “O poeta concretista Haroldo de Campos acaba de publicar um soneto”…) Legado no campo da Poesia, propriamente (são co-inventores da Poesia Concreta, termo sugerido por Augusto de Campos, independentemente de um sueco nascido em São Paulo ter falado em Poesia Concreta antes do autor de POETAMENOS – já que existiam Arte Concreta e Música Concreta, por que não uma Poesia Concreta? – e aceito por Eugen Gomringer, que também se liga à origem dessa poesia), no da Teoria/Crítica (foram arrojados, corajosos e preparados para, além de fazerem abordagens críticas, que iam de Mallarmé a Cummings, e de terem reposto em circulação vários poetas, principalmente do Brasil, elaboram manifestos que marcaram a poesia, não só daqui, mas repercutindo fora), no da Tradução de Poesia (sempre entendida como uma categoria da criação, portanto uma re-criação: transcriação, como dizia Haroldo de Campos ou tradução-arte, como preferiu Augusto, também um ‘intradutor’, o que vem a se somar à ‘tridução’ pignatariana). Nas pegadas de Ezra Pound e com uma cultura poética até um pouco mais vasta que a do Mestre (penso que eles não me perdoarão por esta afirmação), empenharam-se na elaboração de um Paideuma, entendido poundianamente como um conjunto mínimo de poemas com o máximo de informação estética, visando a um público de não-iniciados e de iniciantes.
O rigor era tanto e minha assimilação desse rigor foi tal, que eu dificilmente chego a apreciar uma obra que não seja o máximo, que não esteja além da excelência, muito embora eu seja muito tolerante e procure ver a qualidade onde quer que esteja, e isto já é coisa de velho! Esse rigor nas escolhas – e o que define um crítico são as suas escolhas – leva a grandes exclusões, pois, de fato, como já havia colocado Pound, a maior parte do que se escreve (se pinta, se compõe etc) se encaixa no universo da medianidade. Poucos são os que inovam ou que chegam a subverter a tradição dentro da qual atuam. Os concretistas, tendo feito um balanço das contribuições do modernismo mundial, propuseram-se a fazer poesia de invenção… e fizeram!
Mesmo tendo sido um movimento internacional, com larga produção nos anos de 1950 e de 1960, a melhor poesia concreta que se produziu, originou-se no Brasil, e isto as muitas antologias – como a de Emmett Williams e a de Mary Ellen Solt – podem atestar. Acontece que os poetas do Concretismo (o grande Ronaldo Azeredo é quase uma exceção) tinham o domínio do exercício do verso antes, durante (veja-se o hercúleo trabalho de tradução de poemas em versos realizado principalmente pelos irmãos Campos) e depois da Poesia Concreta, e durante décadas realizaram trabalho de altíssimo nível em todos os campos em que atuaram.
Hoje, dos pioneiros a quem se juntaram outros, só restam vivos Décio Pignatari e Augusto de Campos, que ainda atuam artisticamente, sem estardalhaço, porém. Considero que hoje, no Mundo, não há poetas com conjunto de obra que possa se equiparar ao que fizeram esses dois sobreviventes ilustres da poesia de base experimental. Há ótimos poetas, é claro, mas nenhum com obra tão importante e consistente como a dos dois que, sendo dos artistas mais importantes do século XX, adentraram o XXI, ainda com curiosidade. Não vejo Augusto de Campos há uns dois meses, mas tenho dele notícias por amigos e sei que ele trabalha, principalmente com tradução de poesia, diariamente. Ainda hoje (27 jan. 2010) encontrei Décio Pignatari, aqui em São Paulo, na Avenida Angélica, e ele me disse que atualmente só trabalha algumas traduções de poemas. Décio com 82 anos e quase meio. Augusto com menos de um mês para completar 79! Pois é: os dois maiores poetas do Mundo, Décio Pignatari e Augusto de Campos, que honrariam qualquer Literatura ou coisa que o valha estão aí produzindo, vivendo em São Paulo (de volta de Curitiba, Décio re-instalou-se na Paulicéia). God bless the poets!

*A rigor, pode-se dizer que o “movimento da Poesia Concreta”, com crítica militante e tudo o mais, encerra-se logo após a publicação da revista Invenção 5, em 1967. Porém, os integrantes do Grupo Noigandres (Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald, aos quais vieram se somar Edgard Braga e Pedro Xisto de Carvalho) não se dispersaram e continuaram na linha de frente da Poesia Brasileira e Mundial.

Omar Khouri, São Paulo 2010

Texto escrito por mim no 1º semestre de 2010 e publicado no Portal Cronopios, em 02/08/2010 14:41:00

34. (De São Paulo de Piratininga) Augusto de Campos: Poeta

Falar em Augusto de Campos, hoje, é o mesmo que discorrer sobre como é possível (muito embora raro) adentrar os 80 anos em plena forma e produzindo poemas, textos críticos e traduções-recriações poéticas de uma maneira surpreendente, como vem fazendo esse criador desde fins dos anos 1940, mas principalmente a partir dos ‘50. Concreto histórico, é considerado um inventor, ou melhor, co-inventor de um modo que mexeu com as estruturas do fazer poético sendo que, no Brasil, esse movimento entrou como um divisor de águas: o antes e o depois da Poesia Concreta. Mesmo pertencendo a um grupo de vanguarda e seguindo procedimentos firmados pelos integrantes, a poesia de Augusto de Campos sempre apresentou peculiaridades que a fizeram única, desde que, em 1953, elaborou a série Poetamenos, num diálogo íntimo com a música de Anton Webern: o 1º conjunto sistemático de poemas concretos. Em 1955, propôs o nome Poesia Concreta para aquela que estava fazendo, juntamente com seu irmão Haroldo e com Décio Pignatari, o que contou com a concordância de Eugen Gomringer – poeta suíço-boliviano experimentador e que era secretário de Max Bill na Escola Superior da Forma em Ulm, Alemanha, e com quem Décio Pignatari havia entrado em contato. E o movimento tornou-se internacional. O percurso poético de Augusto de Campos é dos mais admiráveis, do pós 2ª Guerra à atualidade, passando por fases distintas, mas mantendo a coerência dentro daquilo que o vinha caracterizando: a originalidade e o rigor, dentro do universo “verbivocovisual”. Alguns de seus poemas já adentraram a corrente sanguínea da sociedade e fazem a alegria de tantos quantos vêm a ser aficionados da arte da palavra, por excelência, da Arte de Augusto de Campos, podemos dizer. Nessas décadas todas de intensa produção poética – peças densas em relativa pequena quantidade – o poeta praticou uma crítica de um aclaramento ímpar, versando principalmente sobre criadores-inventores de época recente, mas resgatando, por outro lado, valores do passado que haviam sido mal lidos ou nem sequer propriamente lidos. Trabalhou em textos que considerava fundamentais da poesia universal, praticando uma tradução criativa (tradução-arte, como tem dito), com o propósito de formar um conjunto significativo, em português, da melhor poesia produzida no mundo. Houve quem dissesse, em Portugal, ser Augusto de Campos o maior tradutor de textos poéticos para a língua portuguesa, de todos os tempos. E, muito embora não tenha optado pela Docência, como alguns companheiros chegaram a fazer, Augusto de Campos desempenhou esse papel didático em muitas conversas que tinha, com gentes de todas a idades, nas incontáveis vezes em que recebeu pessoas interessadas em arte experimental em sua casa, casa esta que teve tanta ou mais importância para a poesia brasileira e as artes em geral que as de Paulo Prado, de Mário de Andrade, de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade e de Dona Olívia Guedes Penteado. Não há hoje, no Planeta, alguém com um conjunto de obra tão significativo como o que produziu, em quase 7 décadas, Augusto de Campos. E esse reconhecimento vem vindo aos poucos, de fora do País e também de dentro. Basta entrar em contato com sua obra para se ver quanta riqueza ela contém em termos de invenção/informação. João Cabral de Melo Neto – poeta mais que consagrado e com relação ao qual havia como que uma unanimidade no Brasil – chegou a dizer, em diversas ocasiões, que o legado da Poesia Concreta havia sido mais importante para o Brasil que o do Modernismo de 22. E, quando João Cabral era estimulado a citar poetas mais jovens, ele citava Augusto de Campos. Este é um dos grandes criadores do século XX, num confronto internacional (como gostava de dizer Décio Pignatari), que adentra, com pleno vigor, o Terceiro Milênio. Salve Augusto de Campos, Poeta!

Omar Khouri . São Paulo julho 2015.

Texto escrito por mim para ser lido por outrem em Congresso acontecido no IA-UNESP, no 2º semestre de 2015, pois eu estava, já, em Lisboa nessa ocasião (Pós-Doc). Augusto de Campos deveria estar presente, mas não pôde fazê-lo.