Arquivos mensais: outubro 2015

1. A passagem de Décio Pignatari por Lisboa, anos 1950

Em meados de 1956, Décio Pignatari fez uma rápida passagem por Portugal, Lisboa, em sua volta ao Brasil, depois de dois anos na Europa, com estadas principais na França, na Alemanha e na Itália. Em mais de uma ocasião, o poeta e teórico Ernesto Manuel de Melo e Castro (E. M. de Melo e Castro, como assina os seus textos) chamou a atenção para o fato destacando, outrossim, a não-repercussão dessa passagem, apesar de se tratar de um Décio Pignatari em adiantado estado de criação da Poesia Concreta, com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, que permaneciam em São Paulo, mas mantinham, com o autor do Eupoema, uma correspondência epistolar contumaz e volumosa (chegou-se a falar em cartas de 16 páginas!, manuscritas e dactiloscritas). Décio Pignatari travou alguns poucos contactos em Lisboa, sem ter uma ideia precisa das coisas das Artes na Capital Lusa, num Portugal que ainda vivia o período ditatorial salazarista, mas não deixou em branco a sua passagem pela cidade. Acabou por dar uma entrevista, que se tornou um depoimento escrito e, penso que, para a publicação, orientou boa parte do texto introdutório e, certamente, redigiu as notas complementares, com raros momentos de imprecisão. Pois é: eu tive a oportunidade de consultar, na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa), a revista na qual o Depoimento foi publicado e que é referida na “Sinopse” do Teoria da Poesia Concreta (edição da Duas Cidades, 1975, p. 194), no ano de 1956. Trata-se da revista Graal, número 2 (Graal: Poesia. Teatro. Ficção. Ensaio. Crítica. Publicação bimestral, nº 2. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, junho-julho de 1956.). Esta foi uma publicação que teve 4 números, apenas, e todos no ano de 1956, adentrando 57. Uma revista, a começar pela capa, cheirando a século XIX – as 4 capas se repetem, com variação da cor do nome + número, com um mar de textos e poemas em versos, muito do publicado em corpos 12 e 10, sendo neste, inclusive o depoimento de Décio Pignatari. Uma revista acadêmica, com gráfica antiquada que, apesar das ilustrações e uma rara cor, como tantas outras, não apresenta nenhum arejamento. Informou-me Melo e Castro, em entrevista por e-mail, que se tratava de um publicação de direita, fascista mesmo, conservadora, por certo, facto do qual Décio Pignatari não deveria ter a menor ideia. Não sendo este o meu objeto de estudo, propriamente, não me detive no conteúdo da revista, a não ser no texto que me interessava, porém, não deixei de dar uma corrida d’olhos na publicação. O meio ao qual a revista pertencia, talvez que visse aquelas duas páginas como mera curiosidade e, por outro lado, ficaram perdidas em meio àquela verborragia sem fim. De facto, as ideias expressas de DP não tiveram repercussão, embora o poeta estivesse em pleno fervilhar de ideias, sendo que até o nome “Poesia Concreta” já havia sido proposto por Augusto de Campos, em artigo de 1955. Passemos às duas páginas do Depoimento (a revista não fala em “Entrevista”, como na referida “Sinopse”, mas em “Depoimento”: foram dadas a Décio Pignatari as páginas 208 e 209 (a numeração das páginas da revista é contínua, portanto a de nº 2 continua a de nº 1 etc, até o 4, indiciando vol. 1). No Sumário, consta em DEPOIMENTOS: Poesia Ideogrâmica ou Concreta, porém, dentro, à página 208: POESIA CONCRETA OU IDEOGRÁMICA e uma introdução em duas colunas, cujas informações – sendo algumas pontuais (origens do Grupo Noigandres, a revista de nº 2 e a série “Poetamenos”, referida como “O Poetamenos”, de Augusto de Campos) – foram, certamente, fornecidas por Décio Pignatari. O depoimento, que deve ter sido dado por DP por escrito, comparece em itens, numerados de 1 a 12, em bloco único. Já se trata de um Décio com as ideias amadurecidas, como aquele que comparecerá com os irmãos Campos no Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958). Nesses 12 itens, é utilizada a caixa-baixa, com uma exceção: a palavra Alemanha – um lapso, certamente. Aí, o poeta trata da questão do verso, fala em tradição de pesquisa e rigor, pesquisa baseada na informação em âmbito internacional, deprecia procedimentos poéticos brasílicos (chega a falar em “senilidades auri-verdes”), critica a Lírica brasileira. Enumera os grandes valores: Mallarmé, Cummings, Pound, Joyce, cita outros movimentos de outras artes, louva Apollinaire, mas critica o figurativismo de seus caligramas, pois, para a Poesia Concreta, a questão é a da estrutura que se apresenta, que a palavra “noigandres” é sinônimo de poesia e pesquisa e, no item 12 (p. 209): “hoje, mais do que nunca, ser internacionalista é o melhor modo de ser nacionalista.” E assina: “décio pignatari lisboa, julho 1956”. Aí, vêm as notas (em 2 colunas): NOTAS SOBRE OS AUTORES CITADOS (“Notas organizadas por Décio Pignatari e Goulart Nogueira”): Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Max Bill, Escola Superior da Forma – Ulm, Alemanha (Hochschule für Gestaltung: Gildewart, Tomás Maldonado, Eugénio Gomringer), Cummings, Ezra Pound (a quem é reservado o maior espaço), Pierre Boulez entrando, aí, Stockhausen. Ezra Pound já aparecia como uma figura exponencial para Décio Pignatari e os demais componentes do Grupo Noigandres e, sem disputar com Mallarmé (que não entrou no paideuma poundiano, já que o autor dos Cantos preferiu simbolistas de uma outra linha), espécie de deidade para os concretistas, o semideus Pound chega a ofuscar, de quando em vez, o autor do Un coup de dés… Pound, de facto, foi um gigante enquanto poeta, teórico, promoter, tradutor e, como tradutor, foi o grande modelo para os transcriadores brasileiros. Décio Pignatari, nessa sua estada europeia, chegou a procurar, na Itália, um Pound que ainda estava enclausurado nos EUA, no St. Elisabeth Hospital (Washington). Uma vez no Brasil, pediu a Wesley Duke Lee que o fotografasse, pois, já estava livre e na Itália, e o pintor partia em viagem para a Europa (as fotos foram feitas e publicadas). Em 1959, em sua primeira viagem à Europa, Haroldo de Campos encontrou Ezra Pound (foi recebido por ele), com quem teve uma longa conversa (uma entrevista) a qual rendeu um belíssimo texto: “I punti luminosi”, publicado mais de uma vez (Ulisseia, Hucitec). Os concretos Augusto e Haroldo de Campos chegaram a se corresponder com Ezra Pound e a enviar-lhe publicações. Parece que Pound, já cansado, não chegou a compreender a poesia que os então jovens estavam propondo – os pais (artísticos), geralmente, não gostam de se reconhecer nos filhos, nas suas crias. Mas, retornando ao depoimento de Décio Pignatari publicado na Graal 2: – Como perceber a grandeza de suas propostas naquele mar de textos e em corpo diminuto? Como bradar, ali, contra a academia? Na introdução que encima os 12 pontos do Depoimento, à página 208, temos o seguinte: “‘Graal’, como revista interessada em estabelecer diálogo crítico com as várias expressões e movimentos da arte e da cultura universais, em dar conhecimento ao público português de todos os testemunhos válidos e das sérias inquietações e orientações do nosso tempo, não podia deixar de trazer notícia deste movimento, tanto mais que se desenvolve num país da mesma língua e de cultura com tantos aspectos e raízes comuns. Por isso, rogamos a Décio Pignatari o depoimento que arquivamos a seguir, sobre as teses que defendem [os componentes do Grupo Noigandres], e que é o primeiro texto teórico a ser publicado com carácter de manifesto ou resumo das proposições fundamentais do grupo.” Certamente, pela pena de redator da revista. Repercussões teriam, como estavam tendo, no Brasil, as ideias que os concretistas estavam a divulgar nas mídias impressas. A Poesia Concreta brasileira vai repercutir em Portugal a partir de 1962, com a publicação da antologia da Poesia Concreta brasileira, organizada por Alberto da Costa e Silva, à época, secretário da Embaixada Brasileira em Lisboa. O depoimento de DP passou despercebido para aqueles que poderiam apreciá-lo. No mesmo ano de 1956 (mais para o final), por ideia e organização do Grupo Ruptura, acontece em São Paulo – Décio Pignatari no Brasil, desde julho – a Exposição Nacional de Arte Concreta, com a participação de artistas plásticos e de poetas, juntando aos que atuavam em São Paulo, os que operavam a partir do Rio de Janeiro. Esta data de 1956 é apontada como a do lançamento “oficial” da Poesia Concreta. No começo do ano seguinte, a exposição aconteceu no Rio de Janeiro, com estardalhaço da imprensa. A passagem de Décio Pignatari por Lisboa, em meados de 1956, restou como uma simples curiosidade dentro das histórias dos experimentalismos poéticos luso e brasileiro.

Omar Khouri . Lisboa . 2015. Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

Post Scriptum

Cada vez mais creio que os maiores revolucionários das linguagens eram e são os que melhor conheceram e conhecem a tradição, daí, o poderem subvertê-la. No caso específico da Poesia Concreta, a grande empreitada foi efetivada contra o verso, negando-o, assim como foi feito e declarado: “dando por encerrado o ciclo histórico do verso…” – plano-piloto para poesia concreta (in: Noigandres 4, 1958). E os concretos eram, em verdade, excelentes versemakers, como afirmou, em texto dos anos 1950, o poeta e crítico Mário Faustino, nomeando Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar (este, na época, praticando poesia concreta). Diz, precisamente, serem os referidos poetas os melhores versejadores do Brasil, depois da configuração do fenômeno João Cabral. Conhecimento, que é bom dizer, nunca perderam, nem que fosse no exercício (os Campos e Pignatari) da tradução-recriação de poemas-em-versos. O jovem Décio Pignatari foi um espantoso poeta-em-versos, como reconheceram publicamente José Lino Grünewald e Augusto de Campos (“Esses jovens querem fazer poemas em versos, no âmbito da logopeia, e desconhecem Décio Pignatari!”). Dominar o fazer-versos é estar em posse de uma tecnologia preciosa: a tecnologia do verso (para compreendê-la e até praticá-la, o que não era o caso dos poetas concretos, nos anos1950). E dentre as peças notáveis criadas em versos por Décio Pignatari, destaco (porque a citei no texto acima) Eupoema, com suas três breves estrofes (quadras). O poema é de 1951 e foi publicado em Noigandres 1, de 1952. Décio Pignatari referia-se à peça como “o meu poema fernandopessoal”, que se constitui num texto autobiográfico implacável! Vejamo-lo:

EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me

num interstício de marfim,

entre a clareza do início

e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar

de errata a penas deslinda as feias

fauces dos grifos e se refrata:

onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,

mas sim o que escrevo:

Algures Alguém

são ecos do enlevo.

Estupendo o domínio do verbal que Pignatari sempre teve, tanto quando se tratasse de poemas, em versos ou em não-versos, como na prosa metalinguística ou na prosa ficcional-artística, ou numa aula ou conferência. E, interessante é notar que, poetas de gerações posteriores, aficionados da visualidade em Poesia, possuem um considerável domínio das coisas do verbo e até, especificamente, da tecnologia do verso. E, com a Poesia Experimental portuguesa ocorre algo semelhante: dos históricos, como E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly, aos poetas de gerações posteriores, como Fernando Aguiar, o mesmo domínio do verbal e, especificamente, do verso. É importante que não se percam as antigas tecnologias, embora estejamos abertos às novas e prontos para o entendimento de todas elas.