Tanto na Europa como na América (de Sul a Norte), poetas e artistas em geral discutiam procedimentos, praticavam a crítica (= discernimento) e bebiam e comiam e até se agrediam verbal e/ou fisicamente (entre os gregos, havia, além de conversas ao ar-livre e até aulas que eram ministradas a caminhar, as reuniões em que assuntos propostos eram “trabalhados”, enquanto se bebia vinho, mais ou menos diluído com água, daí, sympósion, que significa ocasião em que “se bebe junto”) e não à toa há o célebre texto de Platão, Sympósion, traduzido como O Banquete, em que o assunto escolhido para se discorrer sobre foi o Amor. Bem, saltemos mais de 2 milênios! Em fins do século XIX e inícios do XX, alguns lugares ficaram famosos por terem dado o ensejo a reuniões de artistas e poetas em particular: bares, restaurantes, residências (antecedidas pelos “salões”, também em residências) etc. Em Lisboa, não se pode esquecer, no 1º Modernismo, de A Brasileira do Chiado. O Martinho da Arcada, na arcada da Praça do Comércio (Terreiro do Paço), frequentado por muita gente célebre antes, mas, em especial, por Almada Negreiros e Fernando Pessoa – de lá, a pouco mais de 100 metros, corre o Tejo, em direção ao Atlântico, que está bem próximo: uma esticada de olho e vê-se o Rio. Esses Cafés ficaram na História e ainda estão a funcionar e a atrair, por pura curiosidade, letrados e não-letrados do Mundo todo, sendo que os aficionados da Poesia têm como que a ilusão de estarem a aprisionar um residual de energia… No Brasil, em São Paulo, o berço do Modernismo brasílico, ficaram famosas casas que se dispunham a receber poetas e artistas em geral, dos inícios do século XX, a parte dos anos 1940: a Vila Kyrial, do Senador Freitas Valle (mais de transição que propriamente modernista), a de Paulo da Silva Prado (que chegou a hospedar o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, que esteve no Brasil pela primeira vez em 1924), a de Dona Olívia Guedes Penteado (com seu “Salão Modernista”), a de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (que abrigava o mais famoso quadro da série Tour Eiffel, o de 1911, de Robert Delaunay, e que pertenceu à pintora) e a de Mário de Andrade, sendo esta última a única remanescente, porém, sem o acervo do escritor-polígrafo que, em grande parte, encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. É claro que outras casas chegaram a receber criadores, mas sem a importância das acima citadas. As reuniões informais (houve, também, as mais formais, para tratar de assuntos específicos, mas predominaram as informais em que especificidades poéticas e de edições também eram assuntos tratados), a partir dos anos 1970, aconteceram com bastante frequência em casa de Augusto de Campos, à Rua Bocaina, nas Perdizes, São Paulo. Uma casa (em verdade, um apartamento) que teve fundamental importância para a Poesia brasileira nos anos 70 e 80. O poeta e sua esposa Lygia de Azeredo Campos reservavam um tempo considerável de suas vidas para receber pessoas interessadas em Música, Pintura, Poesia, Artes Plásticas e Gráficas, Cinema etc, e que sabiam da importância e da sabedoria de Augusto. Os anfitriões tinham essa disposição e lá o assunto principal girava em torno de Poesia e outras artes, tendo a Música um lugar especial nas conversas. De Caetano Veloso e Walter Franco a John Cage, de Julio Plaza e Regina Silveira a Geraldo de Barros e Hermelindo Fiaminghi, de Décio Pignatari e Ronaldo Azeredo a Paulo Miranda e Walter Silveira e Lenora de Barros e Tadeu Jungle e Júlio Mendonça e Arnaldo Antunes. Grande divulgador, também, o Augusto de Campos, pessoa muito informada quanto à produção internacional e brasileira de arte de invenção. Era costume os poetas, com suas edições-de-autor, ou seja, autofinanciadas, deixarem vários exemplares de seus trabalhos com o poeta, que os passava adiante, para os frequentadores da casa. A residência de Augusto de Campos, em cerca de duas décadas, desempenhou, em São Paulo, o mesmo papel que as acima mencionadas, só que por muito mais tempo, em época de não-sectarismo. E já se estava vivendo o momento da 2ª geração de experimentadores no Brasil que, como em Portugal, se mescla com os da 1ª, que continuaram atuantes e inventivos. A casa-ateliê de Julio Plaza e Regina Silveira, na região do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, à Rua Baronesa de Bela Vista, onde o casal se estabeleceu quando da volta de uma longa estada em Porto Rico, recebeu também, além de artistas plásticos do Brasil e de fora (coisa que Regina faz até hoje), muitos poetas, jovens e menos jovens, e eles chegaram até a fazer trabalhos em colaboração, como os que Julio Plaza fez com Augusto de Campos e que marcaram as Artes Gráficas no Brasil. Houve, em São Paulo, um centro de estudos das Artes, chamado Aster, criado por Julio Plaza, Regina Silveira, Donato Ferrari e Walter Zanini, que funcionou de 1978 a 1981 e que foi uma espécie de “escola dos sonhos” e que teve de encerrar suas atividades por estar localizada em área exclusivamente residencial, à época. O Aster abrigou muitos encontros de poetas e artistas plásticos, e Zero à Esquerda, publicação coletiva da Nomuque Edições foi, em grande parte, impressa serigraficamente lá, na base do “ateliê livre”. Alguns bares e casas, na capital e no interior (Pirajuí, Presidente Alves, Bauru) serviram de local de encontro dos poetas “intersemióticos”. Com o fechamento do Aster, resolvi montar, em um corredor de meu apartamento, à Rua Dona Veridiana, em São Paulo, uma mesa tosca de serigráfica que era, também, “estúdio” de gravação de matriz serigráfica e isto possibilitou, milagrosamente, a feitura das Artérias 5 e 6, sendo que a de nº 6 foi a revista de mais longa gestação na história da cultura brasileira: mais de 10 anos, do projeto ao lançamento, e as sessões de impressão, como no Aster, eram um misto de canseira e alegria, com muita gente comparecendo (certa vez, eu + Sonia Fontanezi, em conversa com Décio Pignatari em um bar, ele meio de mal com a vida disse, referindo-se à alegria de fazer: – Preferiria eu, mil-vezes, estar naquele corredor da sua casa imprimindo com vocês. E Décio nunca havia ido à minha casa, mas tinha ouvido falar de nossos encontros e impressões serigráficas, que agora reconhecemos: dali saíram pequenas edições primorosas! Hoje, em torno da bissexta Artéria, ainda acontecem, de raro em raro, encontros em que se discutem assuntos relacionados à Poesia.
Em minha troca de e-mails com os históricos Augusto de Campos (1931-) e Melo e Castro (1932-), ambos atuantes e residindo em São Paulo, lancei-lhes a questão das reuniões e obtive respostas. Vejamo-las:
Omar Khouri (02.12.2015) – Caríssimo Augusto
Cá estou eu, de novo, a incomodá-lo com coisas do passado! Nos anos 1970 e 80, sua casa (ap. da Bocaina) foi o lugar mais importante de reuniões não-sectárias de poetas e outros fazedores. Gostaria de saber onde vocês – em época que existiram como “grupo”, nos anos 1950 e 60 – se reuniam para discussões, trocas de informações, apreciação de novos poemas.
Abraços-mil, também para Lygia
Omar, o Khouri
Augusto de Campos (15.12.2015) – Caro Omar, principalmente na Rua Cândido Espinheira, 635, onde residíamos Haroldo e eu com nossos pais. Décio vinha de Osasco, chegava no sábado e pernoitava em casa, voltando no domingo. Menos frequentemente íamos a Osasco. Depois, nos bares com os pintores, Instituto dos Arquitetos, Clube dos Artistas, Museus de Arte e Arte Moderna, casas de uns e outros pintores, residência de Haroldo, minha, na Cândido Espinheira 866, Décio, nas Perdizes, Homem de Melo, Rua Diana (se não me falha a memória), etc.
Abraços
Augusto
Omar Khouri (10.11.2015) – Caro Melo e Castro
Sei que os poetas experimentais portugueses não se constituíram em “grupo”, o que implica não-sectarismo. Mas, gostaria de saber onde se reuniam, quando era necessário: em algum bar ou restaurante? Na casa de alguém dentre os poetas?
Abraços
Omar
Melo e Castro (10.11.2015) – Caro Omar Khouri
Nós nos reuníamos em Lisboa num café perto do Saldanha chamado Monte Carlo ou numa pequena pastelaria mesmo na Praça Saldanha: a Paraíso. Ambos já não existem. Ou em outras pastelarias ao acaso. Nunca constituímos um grupo como por exemplo os Surrealistas-Abjeccionistas, no café Gelo, no Rossio, onde se reuniam todos os dias para coscuvilhar… Nós trabalhávamos cada um em sua casa!
Mesmo faltando alguns dados para esta pesquisa, principalmente no que se refere a Portugal (Lisboa), encerro, por aqui, este texto, esperando poder completá-lo em breve. Acabo de me lembrar das residências (foram, pelo menos, 3) do casal Samira Chalhub e João Jorge Rosa Filho, em Vila Mariana, São Paulo que, em décadas, ocasionalmente, recebia gentes do intelecto e da sensibilidade para jantares, regados a boa comida, bebida e conversa (de Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Melo e Castro e José Saramago. Foi numa dessas ocasiões, em 1976, que ouvi de Décio Pignatari um dos três elogios que chegou a me fazer – disse ele: – Você é autor da mais bela página, da melhor revista que se faz hoje no Brasil. Tratava-se de uma de minhas erotografias, que acompanhava tradução de epigrama de Marcial, por Luiz Antônio de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda, na revista Qorpo Estranho 1, cujo projeto gráfico era de Julio Plaza e a edição de Régis Bonvicino et alii), da PUC-SP, um centro universitário que esteve na vanguarda da divulgação da poesia mais avançada que se fazia no Brasil e no Mundo (Décio Pignatari e Haroldo de Campos exerceram, lá, a docência, assim como Samira Chalhub e Lúcia Santaella, que levou adiante os estudos relativos à Semiótica peirceanas, revelada no País por Décio Pignatari), de bares de São Paulo onde poetas se reuniam com alguma constância, mas mencionarei apenas um, por ora: O Krystal Chopps, à Rua Cardoso de Almeida, esquina com a Dr. Homem de Melo, nas Perdizes, que é onde foi lançada, em 15/16 de julho de 1975 (noite mais fria dos últimos tempos, em São Paulo), o nº 1 da revista Artéria. Estavam presentes: Augusto de Campos, Carlos Valero, Paulo Miranda, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Luiz Antônio de Figueiredo, Hermelindo Fiaminghi e Omar Khouri. E foi no mesmo local, muitos anos depois que ouvi de Décio Pignatari o seguinte: – Pois é, nós fizemos todo um rastreamento crítico, elaboramos todo um paideuma, falamos sobre o melhor do melhor e agora estamos nas mãos dos medíocres! Não ousei, para evitar sobressaltos, perguntar quem seriam os “medíocres”. É claro que não se resolvem os destinos do Mundo numa festa ou numa mesa de bar, porém, muitas ideias transformadoras podem iniciar o seu trajeto revolucionário a partir dessas ocasiões, desses lugares.
Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz