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6. Anotações à margem – BNP: Lisboa III

 Ainda, da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, frequentador contumaz que me tornei e sendo um escrevedor compulsivo, apegado à manuscritura, enquanto que 90% dos leitores, lá, utilizam os seus leptops.

Dado o facto de os textos barrocos portugueses, dos séculos XVII e XVIII, com forte visualidade, terem sido produzidos em época em que o Brasil (os Brasis) pertencia ao Mundo Lusitano, legítimo seria reclamarem, os brasileiros, ou melhor, clamarem os poetas visuais por essa herança. [Lembro-me de ter ouvido, certa vez, em entrevista na TV Cultura de São Paulo, Caetano Veloso estranhar o fato de os paulistas não reivindicarem Chico Buarque, de pai paulista, mas, ele-mesmo, nascido no Rio de Janeiro, porém, criado em São Paulo. Eu diria que o cosmopolitismo paulistano não faz questão disto, já que pode fruir as canções de Chico, pura e simplesmente, sem nenhum problema. O artista, por sua vez, adotou definitivamente, e há muito tempo, a Cidade Maravilhosa e, se não tinha, adquiriu um sotaque Zona Sul.] O Concretismo paulista (com 2 cariocas: Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald) já colocara – bem antes dos estudos importantíssimos terem sido feitos (e publicados) por Ana Hatherly – a importância do Barroco para nossa poesia de invenção e, particularmente, Haroldo de Campos já se colocara como produtor de uma poesia barroquizante, principalmente a partir de 1952 e, depois, na prosapoética das Galáxias, a partir de 1963. Foi Haroldo de Campos o principal responsável pela mudança de uma certa opinião sobre o seiscentista Gregório de Mattos e Guerra, que lera Camões, Quevedo e Góngora. E toda uma defesa do Barroco foi feita nesse sentido [desaprovando a exclusão do estilo do Brasil-Colônia de um certo estudo célebre, que versava sobre a formação da Literatura na Terra Brasilis], culminando com a obra O sequestro do Barroco… e toda essa defesa recebeu, em parte, incentivo da 1ª geração modernista do Brasil, que teve em alta consideração o Barroco, principalmente a vertente mineira do Barroco (viagem dos modernistas de São Paulo às cidades históricas de Minas Gerais, em 1924, com o suíço-francês Blaise Cendras), mas não apenas. Acontece que toneladas de entulho esconderam essa importante herança lusa, mas algo deve ter permanecido dessa vocação de visualidade gráfica na poesia portuguesa que, aparecendo de quando em quando, teve sua primeira explosão com o Modernismo, futuristicamente, mas não apenas e, depois, configurou-se, de facto, no mundo lusófono, com as vanguardas dos anos 50 (Brasil) e 60 (Brasil e Portugal), tudo indicando a sua perenidade, mormente quando vem a adentrar as novas mídias, as novas linguagens. Concluindo: as pesquisas sobre textos barrocos, por Ana Hatherly e sua publicação (volume de 1983: A experiência do prodígio…) evidencia a vocação visual (gráfica) da poesia lusa e, obviamente, isto irá repercutir entre os poetas experimentais.

Afinidades observadas entre novas gerações (a partir dos anos 1970, em que estão bastante diferenciadas) com a geração dos que nasceram em fins dos anos 20, começos dos anos 30, sendo que a geração mais antiga, em boa parte, continuou a produzir em elevado nível, chegando poucos (Augusto de Campos no Brasil, Melo e Castro em Portugal – e poderíamos apontar, também, Ana Hatherly, que faleceu em agosto de 2015) aos dias atuais, curiosos, atuantes, produtivos. Os mais velhos se contaminaram da juventude dos mais novos e estes se valeram da experiência e repertório dos mais velhos e, nesse caminho, nessa evolução, segue a experimentação, valendo-se das novas, sem desprezar tecnologias mais antigas e ainda eficazes.

O domínio do verbal e de tecnologias específicas do verbal, como a do verso: isto deveria tirar a dúvida daqueles que perguntam “- Mas isto é poesia ou artes plásticas?” Parodiando Mário de Andrade: É Poesia tudo aquilo que o poeta quer que o seja.

Alexandre O’Neill (Lisboa 1924-1986) – nome que vi (sim, “vi” e não “ouvi”) pela primeira vez quando, tendo-me apaixonado pelo poema Catar feijão, de João Cabral de Melo Neto, obra-prima publicada entre obras-primas, no livro A Educação pela Pedra, de 1966, senti a necessidade de ler o texto impresso. Vi, então que era dedicado a alguém, para mim, completamente estranho: Alexandre O’Neill e fiquei a matutar de que origem seria. João Cabral era objeto de estudo (a sua poesia) nas aulas de Introdução aos Estudos Literários, na Letras-USP e também no curso de Jornalismo, na FAAP, e Paulo Miranda trouxe até mim a maravilha, não sei de qual das Faculdades, pois ele chegou a cursar as duas. Deveria ser o ano de 1973. No ano seguinte cheguei assistir, como ouvinte, às aulas, na USP, de um grande especialista em João Cabral: o intelectual e crítico João Alexandre Barbosa, que abordou outras joias do mesmo referido livro, como Tecendo a manhã e Fábula de um arquiteto. E Alexandre O’Neill? Bem, ficou em minha cabeça, até que aos poucos, fui desvendando o mistério, sem recorrer ao Google que, na época, não existia. A descoberta do surrealista Alexandre O’Neill em antologias de poesia concreta e experimental foi outra surpresa: os sinais gráficos que levam títulos, comentários acabaram por figurar em muitas antologias e talvez tenham algo a ver com a profissão de publicitário, que o poeta acabou por abraçar, com a maior competência e desenvoltura, expert do verbal, que era. Era amigo de João Cabral, que o tinha na maior consideração.

[E. M. de Melo e Castro, à minha pergunta sobre se havia conhecido pessoalmente o poeta, disse-me, em e-mail (10.11.2015):

“Sim. Conheci bem o Alexandre O´Neill.  Posso dizer que éramos amigos, principalmente nos últimos anos da sua vida. Almoçávamos  muitas vezes na mesma mesa num restaurante do Bairro Alto!,  mas as relações eram um tanto cerimoniosas e ele nunca me referiu nada sobre o João Cabral de Melo Neto. Acontece que pouco mais ou menos nessa época, anos 80 talvez, o João Cabral estava no Porto como Consul do Brasil e só se dava com o Alexandre e com a Sophia de Mello Breyner. Para ele parece que não havia mais poetas em Portugal… tanto que estando eu na Direção do PEN CLUBE Português, em Lisboa, recusou aceitar um jantar-homenagem para o qual o convidamos a vir a Lisboa, respondendo que se o queríamos homenagear, devíamos nós ir ao Porto!!!  Essa homenagem  nunca se realizou… mas o O´Neill nada teve a ver com isso, pois não pertencia ao PEN. O O´Neill era uma excelente pessoa, muito convivial e um ótimo publicitário, profissão que quase toda a vida teve, sendo o criador de muitos slogans que ainda hoje estão na oralidade portuguesa como por exemplo  HÁ MAR E MAR, HÁ IR E  VOLTAR para uma campanha de segurança nas praias.”

Quando, em 1985, estive em Portugal (Lisboa), com Paulo Miranda, Levei, a pedido de Augusto de Campos, várias publicações – Caixa Preta etc – para entregar, no Porto, a João Cabral. A tais publicações, juntamos algumas da Nomuque, mas não fomos ao Porto, onde o poeta era Cônsul Geral do Brasil, mas com direito a usar o título de Embaixador (que ele não quis ser). No Consulado do Brasil, em Lisboa, deram-nos o endereço do diplomata-poeta e enviamos o material e acho que chegou até o homem. Era uma chance de conhecer pessoalmente um dos poetas que eu mais admirava nesta vida, e tive mais duas e não as aproveitei: quando foi em São Paulo lançar a sua edição de poemas completos etc, da Nova Aguilar, em 1994 (Samira Chalhub e Vilma Maggio conseguiram, para mim, um volume com dedicatória), e quando ele, já aposentado, foi residir, não no Recife, não em Sevilha, mas no Rio de Janeiro (pertencia à Academia Brasileira de Letras), Bairro do Flamengo. Augusto de Campos deu-me o endereço, inclusive o telefone, mas acabei por não ir, considerando a sua quase total cegueira e a sua irritabilidade (todos diziam). Ah, não fora a aspirina…! Poucos poetas-verso do mundo lusófono estiveram no mesmo patamar que João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Seus poemas de A Educação pela Pedra se constituem em verdadeiras joias: divididos em duas partes, opera o poeta, embora moderna e secamente, como um fazedor de sonetos: cria uma tensão, lança um problema, na 1ª parte (as quadras do soneto), e resolve a tensão na 2ª (tercetos). De suas entrevistas filmadas/gravadas (tanto da juventude, como da maturidade e velhice), duas coisas me ficaram (além do cacoete “compreende?”): não é necessário poetizar o poema, pois ele já é poético, e um livro tem de ser planejado como um todo, não devendo ser um ajuntamento, uma cata de poemas.]

Vamos ao Catar feijão (que, enganosamente foi “corrigido” na edição da Nova Aguilar):

CATAR FEIJÃO

       A Alexandre O’Neill

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na fôlha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, tôda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nêle,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

   2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

Na Edição original, em A Educação pela Pedra (Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1966), o poema comparece impresso em 2 páginas, assim como os demais poemas. O livro, como um todo, é dedicado a Manuel Bandeira, “para seus oitent’anos”. Esta consulta foi feita, obviamente na BN, muito embora, em São Paulo, eu possua essa edição em minha biblioteca. Bem, voltando a Alexandre O’Neill, as suas faturas que têm feito parte de antologias de Poesia Concreta e Experimental, encontram-se num livro de 1960: Abandono Vigiado (Lisboa: Guimarães Editores), livro dedicado ao “brasuca Alexandre Eulálio” – secção da 1ª parte “Divertimento com sinais ortográficos” (p. 21-49). Os sinais enormes tomam boa parte do branco da página, chamam a atenção para o branco da página, numa série, simplesmente ótima (? ! Ç … ~ § etc ) e dedica a secção: “A Sebastião Rodrigues, que se divertiu a apurar graficamente este Divertimento. Ao compositor e aos impressores que colaboraram neste livro”. Acontece que, chamando a bela série de “divertimento”, o poeta estaria tentando uma espécie de legitimação perante o establishment literário, o que não lhe tira, de qualquer modo, o mérito. É claro que há de se considerar o lado propriamente lúdico dessas facturas, o que têm de teor humorístico, de uma qualidade sem brincadeiras. Segue 1 exemplo:

§

Tenho colo de cisne e

corpo de hipocampo

 

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes

da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

5. Anotações à margem – BNP: Lisboa II

Da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, ainda as anotações que se seguem, para não dar muita chance ao ócio, em momentos mínimos, e para que o alvoroço pensamental se aquiete um pouco e que se possa produzir algo mais elaborado a seguir – talvez que as primeiras ideias venham a ser as melhores, embora, às vezes, toscas na aparência.

§

A saída do sufoco, em Portugal [25 de Abril de 1974, depois de longuíssima ditadura de coloração fascista], e a entrada num internacionalismo [que já vinha acontecendo, há mais de 10 anos], com a Poesia Experimental… Nesse internacionalismo entra, obviamente o Brasil, com a Poesia Concreta (e outras tendências) e os contactos, que realmente houve, incluindo-se, aí, a correspondência epistolar de Melo e Castro com Haroldo de Campos. Este, teve papel fundamental, com sua paciência para escrever cartas, seu domínio de várias línguas e entusiasmo com relação ao Movimento [da Poesia Concreta], que se tornava internacional, de facto. Sob este aspecto, Melo e Castro também desempenhou importante papel, principalmente divulgando a PC no Reino Unido.

Publicações fora [do Brasil] e exposições…

§

Artistas portugueses radicados no Brasil:

(Vieira da Silva, nos anos 40, com o marido…)

Joaquim Tenreiro

Fernando Lemos (trabalhou com Décio Pignatari; é coautor do logo C2N2L, da TV Cultura-SP, que não foi aprovado).

António Manuel

Arthur Barrio. Arte brasileira? Arte portuguesa no Brasil? Arte universal.

§

A partir dos anos 1960 (o País vivendo, ainda, regime de exceção) e daí em diante, a poesia portuguesa partiu para uma internacionalização sem precedentes… publicações, congressos, exposições. Lisboa congrega e irradia e como que retoma um cosmopolitismo que era dela, séculos antes! Pelo que pude notar, até agora, os poetas experimentais [de 2ª e 3ª gerações] portugueses tiveram muito mais veiculação impressa que os da mesma época, no Brasil, que continuaram e continuam (em parte) a financiar as próprias publicações. Mas parece que, nem cá nem lá há muitas facilidades para veicular poesia e, ainda mais, uma poesia interdisciplinar.

§

Revistas, sempre com importante papel: no Modernismo etc (desde antes, porém) e até à atualidade, com a mídia eletrônica [e o carácter crescente e mutante]. Os blogs proliferam, mas a coisa impressa continua a exercer fascínio sobre quem faz o seu registro gráfico – e escrever, grafar é assumir um compromisso com a Posteridade (não a Eternidade). No Brasil, anos 1970, proliferação de revistas experimentais ou “de invenção”, como já se disse. E em Portugal? Saberei.

§

As questões que os “mal-humorados” colocam:

– Mas a Arte (e a Poesia, especificamente) não é necessariamente experimental? Isto já foi respondido em Portugal e no Brasil e noutras paragens…

– Mas a Poesia não foi, desde sempre, intersemiótica?

Três negações entrariam numa definição de arte, na parte de complementação de ideias: 1º Arte não é espontânea, 2º Arte não é expressão de sentimento e 3º Arte nem sempre é invenção, ou seja, a Arte nem sempre inova. E é arte porque cumpre um papel nas sociedades. Não à toa Pound, em sua classificação dos escritores (poetas, artistas em geral), coloca os Mestres, depois dos Inventores.

Experimentação tem a ver com busca, risco, portanto, com curiosidade (aquela de que era dotado Leonardo da Vinci, aquela que conduz ao conhecimento). Experimentação não é reiteração de excelência, experimentação implica perigo. Herberto Helder e Melo e Castro escreveram muito bem sobre isto!

§

Antologias: quanto à questão da qualidade do material constante, nem se discutiria, bem porque esta seria a condição básica, como numa curadoria de Artes Plásticas etc. Daí, para evitar volumes intermináveis é que se colocam: “dos anos X”, “dos poetas com mais de X anos”, “daqueles que publicaram seus poemas em livros”, “dos que etc etc etc”. Antologias sempre apresentarão problemas, sempre abrigarão enganos, deverão ser sempre reconsideradas as seleções feitas. Antologias da Contemporaneidade: as mais difíceis, as que mais erram – quando se tornam passado e as olhamos criticamente e que percebemos melhor isto. Por outro lado, o antologista não pode apenas se ocupar do já consagrado, mas arriscar-se, ter coragem de assumir indicações não óbvias. O grande crítico é aquele que revela à sociedade novos valores – o resto é lucro.

§

Dizer que a Poesia Experimental é a “poesia do significante” é errôneo e preconceituoso. É aplicar a teoria e a terminologia inadequadas para uma poesia que se propõe de risco, de invenção. A Arte privilegia a Forma, senão não seria Arte e esta coloca em evidência, obviamente a materialidade dos signos que compõem a obra – Jakobson, discorrendo sobre a Função Poética e o signo linguístico. Acontece que – e isto pode-se tirar da teoria jakobsoniana como corolário – à prevalência da forma, corresponde uma potencialização semântica. De qualquer modo, o termo “significante” está atrelado à teoria saussuriana, que não é a mais adequada para analisar uma factura intersemiótica. Nisto, a teoria semiótica peirceana dá melhor conta do recado: desde a definição de signo, com sua enorme abrangência, até à classificação dos signos (o Signo com relação ao Objeto)– teoria que possui mais de 100 anos de existência, mas cuja dissecação ainda se processa. Uma “poesia do significante” coloca em evidência a separação conteúdo-forma, algo não-desejável, muito embora, em algum momento, a denominação possa ter funcionado [para propósitos específicos, não apenas por críticos, mas , antes, por poetas do ramo, mesmo].

§

Teorias criadas para uma área específica podem ser utilizadas com o devido cuidado – já se disse – em outras, já que extrapolam o seu âmbito original.

Aceita-se Platão, aceita-se Aristóteles, que escreveram no século IV aC (como se se pudesse encontra-los ali, no bar da esquina, em qualquer momento), mas desaprovam a utilização de uma obra, uma teoria escrita nos anos 1930 – acham-na antiquada, ultrapassada. Ah!, essa Academia!!!

§

Melo e Castro evidencia a importância da Poesia Concreta Brasileira para a arrancada da Poesia Experimental portuguesa. Ana Hatherly reconhece o pioneirismo brasileiro, mas minimiza o papel do Grupo Noigandres em Portugal e valoriza Gomringer e, mais precisamente, o movimento de experimentação que se configurou na Europa a partir da Poesia Concreta, criação de Gomringer + Noigandres. Diz que, mais influenciado pelo grupo brasileiro, é Melo e Castro. Penso que o cerebralismo de Melo e Castro esteve acorde com o do Grupo Noigandres, daí a aproximação e afinidades até formais, apenas num dado momento. Ana Hatherly faz uma boa metalinguagem, grande pesquisadora, uma poeta a ser estudada, apreciada e amada.

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Sem querer minimizar a importância do mundo acadêmico naquilo que ele tem e traz de relevante, geralmente não é graças a ele que as coisas vão para a frente (no âmbito das Ciências deve estar a exceção). Os acadêmicos são capazes de pesquisas minuciosas, com análises aparentemente, ou de facto, profundas, porém, quando se trata de Arte, quando abordam artes que fizeram revoluções, são cautelosos, parecendo querer navegar por mares de calmaria e, portanto, colocar um ponto final nas inquietações vanguardistas. Dão um “graças a Deus” por um certo processo ter-se encerrado e dificilmente aceitam um novo modo de ver as coisas, pois teriam de refazer todo o seu repertório já cristalizado, solidificado e não querem abrir mão de suas conquistas intelectuais e abraçar novas causas [como sempre e onde quer que se vá, há exceções]. Penso que a principal questão, aí, é o medo da perda do instrumental seguro para a abordagem do objeto de pesquisa, preferentemente situado num lugar do passado distante. Com um processo encerrado, tudo poderá ser etiquetado e engavetado, não mais representando perigo à muralha de conhecimentos que estava sendo ameaçada e até prestes a ruir – o conservadorismo das sociedades constitui-se numa força poderosa e a Academia, aí, possui importante papel. Novas produções artísticas exigem novas teorias e, como já se disse, a obra de invenção apanha a crítica desprevenida/despreparada. A crítica acadêmica, oficial ou oficiosa, vê-se atropelada pelos acontecimentos e reage, como aconteceu em muitas ocasiões e muitos lugares, a propósito de inovações ou mesmo, de revoluções no âmbito da linguagem. No Brasil, a Poesia Concreta criou inimizades duradouras, no mundo acadêmico e fora dele.

§

Eu pensava Pessoa, em sua grandeza, como uma bomba de efeito retardado, a ocupar um lugar cada vez maior dentre as cogitações daqueles que se dedicam à Poesia [em Portugal], tanto os meramente apreciadores e pesquisadores, como os fazedores [poetas]: a questão seria fugir a tudo isto, escapar à tentação de estar a imitar o mestre ou estar acoplado a ele, como aqueles pequenos peixes grudados nos tubarões, que acabam por levá-los por onde forem: peixinhos-poetas subsidiários do grande vate. De facto, a obra pessoana criou problemas praticamente insolúveis para a poesia-em-versos estabelecendo patamares difíceis de serem alcançados, no âmbito da Língua Portuguesa (e alguns poetas e críticos explicitaram isto), mormente em Portugal. A Poesia Experimental mostrou que havia um outro caminho/outros caminhos, e abriu/explicitou possibilidades-mil para as novas gerações.

§

A discussão sobre a denominação “experimental” está sobejamente apresentada na introdução da antologia elaborada por Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro e que – parece – não gostam de vanguardas, mas fizeram um estudo cuidadoso/minucioso para introduzir os poemas/poetas objetos da referida obra, por sinal, um belo e importante livro, e no Brasil ainda não temos um trabalho desse porte, com tal abrangência, referente à Poesia Visual, digamos. Os autores recorrem a muitos teóricos, mas o que há de melhor ali é a citação de Herberto Helder, que se encontra em Poesia Experimental 1. Eu, particularmente, só aceito que toda prática artística tenha algo de experimental, se se considera a luta com (contra) o acaso, no processo de elaboração, posto que a Arte nem sempre é inovadora e a ânsia dos experimentais é chegar a algo novo. Então, nós reservaríamos o termo “experimental” para a prática que tem a experimentação como propósito e isto envolve risco, independentemente de se enquadrar no que se convencionou chamar “vanguarda”.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

4. Anotações à margem – BNP: Lisboa I

Na Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, têm-se as condições ideais para um bom trabalho de pesquisa bibliográfica, ou mesmo de fontes primárias ou documentais: farto e rico material, em grande parte disponível nas edições originais (algumas edições raras ou em estado precário podem ser consultadas digitalizadas ou em microfilmes), sistema informatizado e desburocratizado, um pessoal da maior gentileza e competência. Frequento essa Biblioteca desde que cheguei em Lisboa, agosto de 2015, e a boa impressão inicial foi sendo reiterada nas muitas vezes seguintes em que lá estive. Entre um livro e outro ou na espera de uma edição mais difícil de ser localizada pelo técnico encarregado – o que é que esse brasileiro está a pesquisar em obras que quase nunca foram a nós solicitadas?, seria lícito pensar – eu fazia o registro escrito de alguma ideia que me ia surgindo, no mínimo, com a esperança de desenvolvê-la melhor, em futuro próximo. Trago, aqui, algumas dessas anotações, quase em ordem cronológica de registro. Anotações à margem dos fichamentos de livros e revistas, meus objetos de leitura, matérias-primas de minha pesquisa sobre poesia e visualidade em Portugal e suas relações com a poesia, da mesma estirpe, produzida no Brasil. Os acréscimos posteriores vão entre colchetes.

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Augusto de Campos fez-me alguns esclarecimentos, por e-mail, e falou da importância que Alberto da Costa e Silva teve para a divulgação da Poesia Concreta na Europa. Deve ter correspondência com o diplomata entre os seus documentos, assim como o arquivo epistolográfico de Haroldo de Campos, porém, seria difícil procurar, naquele momento. Melo e Castro deve ter tido um melhor conhecimento da PC brasileira, pela antologia de 1962 [foi, desde aquela época, e é amigo de Costa e Silva]. Costa e Silva é que deve ter feito, de facto, a seleção dos poemas constantes na antologia [provavelmente, trocando ideias e/ou acatando sugestões dos Campos] e a publicação saiu, é claro, graças a ele, que era Secretário da Embaixada do Brasil em Lisboa, e ele-mesmo poeta e escritor. Augusto disse-me que nem imagina quem vem a ser Marcelo Moura que, nas informações biográficas, fica-se sabendo que é cearense, nasceu em 1941, e que residia em Londres, à época. [Ele foi um dos antologizados, e figura ao lado dos criadores da Poesia Concreta.]

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Modernismos – tanto no Brasil, como em Portugal, Futurismo e Cubismo (muito tardio, no Brasil) tiveram fundamental importância e acho que também o Expressionismo – basta ver melhor como é que foi em Portugal, pois no caso do Brasil, não há dúvida. Contactos com Paris: diretos e por meio de… [Mário de Andrade, diferentemente de alguns companheiros de jornada artística, nunca saiu do Brasil, ou melhor, da América do Sul, mas informava-se por meio de publicações e amigos de lá chegados, cartas]. O Cubismo, antes em Portugal [o pintor Amadeo de Souza-Cardoso inteirou-se daquele repertório na capital francesa e teve obras expostas em Nova Iorque – Armory Show – em 1913. Veio a falecer muito cedo, em 1918].

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Na Poesia Experimental [portuguesa], parece que acontece como no Brasil: respeito [dos mais novos] pelos experimentadores veteranos: Melo e Castro, Salette Tavares, Ana Hatherly, António Aragão, entre outros.

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Pessoa: presença esmagadora. Não houve fenômeno semelhante no Brasil, que teve vários poetas excepcionais, no Modernismo e em momento imediatamente posterior. Sá-Carneiro – morte prematura, talento extraordinário. Almada como poeta… ? Não posso avaliar, ainda.

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O Futurismo ainda teve mais importância para os portugueses [pelo menos até fins de 1917]. Começaram antes, porém, não tiveram uma Semana, como a de 22. [Enquanto em Portugal, já em 1915, há uma revista modernista Orpheu, que teve 2 números (o 3º ficou nas provas tipográficas), publicação importante, mas sem arrojo gráfico – a não ser a colaboração de Santa-Rita Pintor (1889-1918) no 2º número, + poema de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)- Manucure – e um pouco do excesso interjetivo de Pessoa-Álvaro de Campos. Houve ainda a Portugal Futurista, fins de 1917, e que chegou a ser apreendida – aí, já há um arrojo gráfico, de par com o que era tradicional nas publicações periódicas. Klaxon, primeira revista modernista do Brasil, que durou de 22 a 23, teve 9 números em 8 volumes e apresentou um arrojo gráfico apreciável, diferente do que se observava em revistas do Brasil, na época.]

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Os poetas visuais portugueses da atualidade parecem respeitar os mais velhos, que foram concretistas [de linha brasileira-noigandrense ou de linha propriamente europeia-gomringeriana, mas não somente], como Melo e Castro e Ana Hatherly [infelizmente, não pude conhecê-la pessoalmente, pois veio a falecer em 5 de agosto deste ano]. Parece que alguns não têm muita simpatia pelos concretos históricos do Brasil. A poesia visual/experimental brasileira que mais se assemelha à produzida em Portugal é a que deriva do Poema-Processo.

1956 (meados): passagem de Décio Pignatari por Lisboa – parece que não chegou a dar frutos.

1962: a antologia Poesia Concreta – marcou. Melo e Castro dixit.

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Parece que existe, mesmo, por parte do pessoal mais novo – dos 40 aos 60 anos, ou um pouco mais – um respeito reverencial [não subserviente] pelos veteranos da visualidade em poesia (vamos ver se, pelas entrevistas, isto se confirma).

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Como no Brasil: os poetas visuais portugueses abraçaram, por um lado, as novas tecnologias e, por outro, a coisa do conceitual e suas ramificações como, por exemplo, a performance. A info-poesia é praticada e se apresenta com bastante força. [O fenômeno parece ser mundial.]

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Fico a pensar sobre o pouco uso da cor na poesia impressa: seria a questão do custo [sendo que grande parte das edições existe em função dos recursos dos próprios poetas – edições auto-financiadas], até a chegada dos anos 90? No Brasil, ao que me consta, houve um pouco mais de utilização do elemento-cor, a começar pelos poemas da série Poetamenos, de Augusto de Campos, mas a questão custo foi um fator de impedimento importante. O pessoal de Artéria encontrou solução parcial, ainda nos anos 1970, na serigrafia, delegando a gráficos a tarefa, e aprendendo a técnica e executando o trabalho de impressão, sendo poetas-impressores: de fins dos anos 70 os inícios dos 90.

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Antologias são injustas, sectárias, excessivas, corrigíveis (modificáveis). Como evitar, pelo menos, a 1ª e a 3ª, já que que as outras “qualidades” continuarão sempre a existir, posto que inevitáveis? O Paideuma poundiano e a seleção drástica: seria, de facto, possível? [É preciso ter coragem intelectual.]

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

3. Viagens: a viagem de Décio Pignatari à Europa, nos anos 1950

Há vários modos de aquisição de know-how, além da espionagem – há modos mais dignos, digamos, que não sejam o da rapinagem ou o do ato de surripiar. As viagens são muito importantes para a aquisição de know-how, de repertório (ampliação e elevação), pois constituem vivência hiper-complexa, que envolve múltiplas experiências, que vão da observação de paisagens à apreciação da arte, da culinária, aprendizado de idiomas e modos, enfim, aquisição de conhecimentos em geral e até de conhecimentos específicos. Isto acontece desde sempre e é claro que, no Mundo Grego, a coisa toma uma feição bastante notória e notável, com os livros do Pai da História, Heródoto, no século V a.C. A aquisição de know-how pode, enfim, dar-se de muitas maneiras: desde o deslocamento de uma pessoa, ou a contratação de alguém, ou o seu envio a algum lugar, a chegada de livros etc. Mas requer – sempre – esforço: adquirir conhecimento dá trabalho e inteligência é coisa que se cultiva e, assim, evita-se o processo de emburrecimento. Algumas viagens ficaram famosas dentro da História e fora dela, considerado, aqui, o universo ficcional. Mas, interessa-nos, agora, as que pertencem à História, como as dos Polo, por exemplo, pois tiveram desdobramentos, fizeram história, de facto. De importância grande para a Poesia Portuguesa foi a viagem de Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) à Itália (e Espanha), com retorno em 1526, pois, da Península Itálica ele trouxe o Soneto, forma fixa da poesia ocidental, mormente da Lírica, das que maior sucesso tiveram e que, já alcançando alta qualidade nas facturas do introdutor, atinge o apogeu na Lírica Camoniana (Camões: 1524-1580) – e o verso decassílabo. Há outros deslocamentos importantes na história Ocidental, com importantes consequências, envolvendo todas as artes. Artistas, quando se deslocavam para centros, como as cidades italianas nos séculos XV e XVI, ou Paris, no século XIX e inícios do XX, para aquisição de um Know-how somente encontrável lá. Marcel Duchamp fez o caminho inverso, deslocando-se de Paris para Nova Iorque, em 1915, afastando-se do palco principal da Primeira Guerra Mundial. Em inícios do século XX, Paris estava no centro das cogitações dos artistas, não só da América, mas da própria Europa. Tanto para portugueses como para brasileiros (e estadunidenses e outros americanos, diga-se), a capital da França era o foco – veja-se o caso, por exemplo, do grande artista português, que teve obras suas expostas em NYC, no Armory Show (1913), Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). A pintora brasileira Anita Malfatti (1889-1964) foi exceção: apontada como aquela que despertou o Brasil para o Modernismo, estudou na Alemanha e, depois, nos EUA. Somente depois da Semana de 22, mais precisamente, em 1923, rumou a Paris, com Bolsa de Estudos do Governo do Estado de São Paulo. Tarsila do Amaral (1886-1973), em Paris, inícios dos anos 20, absorveu tardia, mas consistentemente as lições do Cubismo. Em 1924, estando Blaise Cendrars em visita ao Brasil, os modernistas de São Paulo empreenderam uma viagem, espécie de excursão, às cidades ditas históricas de Minas Gerais, como Ouro Preto, São João del Rey, Congonhas do Campo, Mariana, Tiradentes e começam a empreender a redescoberta do Brasil, sendo o documento de abertura desse processo o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado pouco antes (março de 1924). Aqueles tesouros do Barroco tardio e do Rococó maravilharam os brasileiros, assistidos pelo suíço-francês Blaise Cendrars, sendo que isto repercutiu não apenas nas obras de Oswald de Andrade e de Tarsila do Amaral, como chamou a atenção dos próprios mineiros para aquela herança da época do Brasil-Colônia, e teve início o processo de valorização do Barroco (–Rococó) mineiro e doutros barrocos do Brasil, o estilo identificado como o “estilo colonial” brasileiro. Veja-se este poema de Oswald de Andrade, em louvor a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, do livro Pau-Brasil (1925), que me foi revelado por Paulo Miranda, que dele fez excelente análise:

OCASO

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas

Diplomatas como João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mais levaram do que trouxeram em termos da poesia que praticaram, se se considera apenas as produções dos contemporâneos dos lugares onde serviram. João Cabral, um viajor, manteve contatos com artistas (não somente da palavra), como Miró (sobre quem escreveu belíssimo ensaio, mas abordando-o, também, em poemas), Joan Brossa, Tàpies, Alexandre O’Neill (a quem dedica um poema obra-prima, do livro A Educação pela Pedra: “Catar Feijão”). Mas, o enriquecimento repertorial certamente ocorreu. Não basta que se empreenda uma viagem que, de qualquer modo, acrescenta. É preciso que se tenha um propósito específico, uma busca em mente. Décio Pignatari, quando se dirigiu, com a esposa recente, à Europa, tencionava não mais voltar, a ponto de carregar consigo uma quantidade apreciável de livros, praticamente a sua biblioteca da época, pois permaneceria no Velho Continente, talvez para sempre. O casal embarcou em Santos (meados de 1954), num navio meio precário, o Yapejú, em condições bastante modestas (e boa parte dessas informações foi-me fornecida pela viúva Lilla Pignatari, em inícios de 2013, numa entrevista informal, apenas anotada). Do desembarque à acomodação, em Paris, viveu, o casal, uma quase-odisseia, até que as coisas se ajeitaram. O pai de Décio Pignatari enviava, ao mês, a quantia ínfima de 100 dólares, o que na época já era muito pouco. Não houve chances para trabalho, a não ser a tradução de um livrinho, o que fez com que planos iniciais fossem mudando. Pouco mais de um ano em Paris, onde o principal contacto foi com o músico Pierre Boulez (1925-), que já havia estado no Brasil. Parece que a poesia (notória) praticada na França, à época, não interessou a Décio Pignatari (não me canso de dizer: quando a correspondência epistolar entre Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, dessa época: 1954-56, puder ser lida, esta história, também, poderá ser melhor contada). Constante o contacto com Peirre Boulez – almoços quinzenais a convite do músico (providenciais, nas próprias palavras de Pignatari). Conversas com o músico, que chegou a lhe dizer que, quando tivesse acesso a certos recursos, faria grandes coisas. Foi daí, e por influência de Décio Pignatari, que formulei o seguinte pensamento e que não deixo de repetir a jovens artistas, alunos meus ou não: – Se tiver alguma ideia, concretize-a, mesmo com os parcos recursos e as condições precárias que tiver, no momento – não espere as “condições” ideais porque, daí, a obra não se concretizará. As obras quase-sempre são feitas, mesmo que “apesar de” (vai, aí, um pouco de Nietzsche). Um tempo, cerca de seis meses, na Alemanha. Em Ulm, conheceu Eugen Gomringer (segundo semestre de 1955, e por intermédio de Tomás Maldonado), que era secretário de Max Bill na Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), escola de Design, em boa parte herdeira da Bauhaus (1919-1933: Weimar, Dessau, Berlin). Max Bill, reitor da Escola, papa da Arte Concreta, era conhecido no meio erudito brasileiro, tendo exposto no MASP e participado, como artista suíço, da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, tendo ganho o prêmio de escultura (sua Unidade tripartida, obra-prima da escultura universal de qualquer tempo, do MAM-SP passou ao MAC-USP, onde permanece). Gomringer (1925-) poeta suíço-boliviano, chamou a atenção de Décio Pignatari, 1º porque tinha um elenco de precursores semelhante ao que cultuava o Grupo Noigandres, Mallarmé acima de tudo e todos, o inaugurador de uma nova poética e, 2º, porque praticava uma poesia ultra parcimoniosa, tendo já algumas realizações propriamente “concretas”, assim como Augusto de Campos havia composto, durante o 1º semestre de 1953, a série Poetamenos – considerada o 1º conjunto de poemas concretos. Daí, o interesse passou a ser mútuo, com troca de informações e, posteriormente, contatos epistolares, como a carta em que Gomringer escreve (em francês) dizendo achar conveniente o nome Poesia Concreta, proposto por Augusto de Campos em texto publicado de 1955 (Eugen Gomringer carta a Décio Pignatari, de 30.08.1956: “Votre titre poésie concrète me plait très bien. Avant de nommer mes “poèmes” constellations, j’avais vraiment pensé de les nommer “concrets”. On pourrait bien nommer toute l’anthologie “poésie concrète”, quant à moi.” Planejava-se uma antologia internacional de poesia concreta – “Sinopse” do Movimento da Poesia Concreta Brasileira, ano de 1956, em Teoria da Poesia Concreta). Décio Pignatari ainda passa pela Itália, momento em que Lilla, grávida do primeiro filho, volta para o Brasil, para dar à luz a criança, já que as questões econômicas praticamente impediam que nascesse na Itália – Diniz Pignatari nasceu em São Paulo, no 1º semestre de 1956, e Décio na Itália. Daí, chegando aos meados de 56, ruma para o Brasil, não sem antes passar pela Espanha e por Portugal. Na Espanha, encontra-se com João Cabral de Melo Neto (veja-se o belíssimo texto de Décio Pignatari: “João Cabral”, em Errâncias. São Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 55-59), fim de primavera, poeta que já merecia grande consideração por parte dos componentes do Grupo Noigandres e que figurará, com outro brasileiro, Oswald de Andrade, no Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958). Curiosa sua passagem por Lisboa, onde teve a oportunidade de dar uma entrevista, que se transformou em depoimento e que teve publicação na revista Graal nº 2, de junho-julho de 1956. O depoimento passou despercebido pelos jovens poetas/intelectuais e não teve, portanto, o papel de inaugurador que poderia ter tido, na Terra de Fernando Pessoa. Enfim, Décio Pignatari chega ao Brasil e, com os irmãos Campos e sempre em contacto com os pintores do Grupo Ruptura, principalmente com Waldemar Cordeiro, trama o movimento, que já começa internacional, com a participação inicial de Eugen Gomringer (co-fundador) e que irá se alastrar pelo Mundo. No Brasil, ainda em 1956, acontece a Exposição Nacional de Arte Concreta, em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro, com artistas de linha construtiva, mais poetas. O nº 3 da revista Noigandres já traz o subtítulo Poesia Concreta. Décio Pignatari entra como o articulador do movimento internacional da Poesia Concreta, a partir de seus contactos com Eugen Gomringer. Em Portugal, a Poesia Concreta explodirá a partir de inícios dos anos 1960: 1962 é, propriamente, o ano-marco, com a publicação da antologia de poesia concreta brasileira, organizada por Alberto da Costa e Silva: Poesia Concreta, e com a publicação do livro de Ernesto Manuel de Melo e Castro Ideogramas e passa, depois, a assumir a denominação de Poesia Experimental (nome de importante revista, que teve 2 números: 1964 e 1966) e com características bem próprias. Diferentemente da organização a partir de um grupo, como ocorreu no Brasil, a Poesia Concreta e/ou Experimental portuguesa não contou com grupo organizado, o que implica sectarismo, mas uniu poetas cujas afinidades e espírito de experimentação propiciaram grandes feitos poéticos. Décio Pignatari, com sua viagem à Europa, mais instigou que absorveu, arquitetou, considerando o trabalho que vinha desenvolvendo com Augusto e Haroldo de Campos, o Movimento da Poesia Concreta que, no Brasil, representou um divisor de águas e que estava fadado a durar muito tempo, sofrendo notórias modificações ao longo de seu percurso.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

 

2. Antologias de Poesia Brasileira, em Lisboa: 1960 e 1962

Num texto de 1977, em que faz a apresentação da Poesia Experimental portuguesa presente na XIV Bienal de São Paulo, E. M. de Melo e Castro afirma: “Dois acontecimentos antecedem o aparecimento em Portugal de manifestações originais da Poesia Experimental: primeiro, a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956 (sem resultados significativos) após o seu já histórico encontro com Gomringer; segundo, a publicação em 1962, pela Embaixada do Brasil em Lisboa, de uma pequena mas excelente compilação da Poesia Concreta do Grupo Noigandres – São Paulo – Brasil (ano em que eu próprio publico IDEOGRAMAS, reunindo poemas de 1961).” (A Poesia Experimental Portuguesa. Catálogo da representação portuguesa na XIV Bienal de São Paulo. São Paulo, 1977. Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian). Já tratei da visita de Décio Pignatari à Capital Lusitana, tentando compreender o (não-) alcance do que deixou registrado em forma de depoimento. Agora, debruço-me sobre antologias de poesia brasileira vindas a público na Terra de Fernando Pessoa. No ano de 1962, em Lisboa, é publicada uma antologia de Poesia Concreta brasileira – Poesia Concreta (Lisboa: Serviço de Propaganda e Expansão Comercial da Embaixada do Brasil, 1962.) – na Biblioteca Nacional de Portugal, pude consultar o livro, digitalizado, o que não permitiu que o exame da publicação fosse mais completo. Demorou para acontecer algo semelhante no próprio Brasil e, mesmo assim, quando aconteceu, aconteceu precariamente: uma antologia de Poesia Concreta que não fosse bancada pelos próprios poetas, mas por editora integrante do mercado de livros. Essa referida antologia de 1962 veio a lume graças aos esforços do então Secretário da Embaixada do Brasil na Capital Lusa, o poeta, escritor e diplomata Alberto da Costa e Silva. Novamente, vislumbro uma melhor elucidação desse processo cultural, quando puderem ser estudadas as trocas de correspondência que, de facto, existiram entre os irmãos Campos e o diplomata antologista. Essa publicação foi precedida por outra mais geral, que se constituía num alentado volume, também organizada por Alberto da Costa e Silva: A Nova Poesia Brasileira (Lisboa: Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Lisboa, 1960), com 287 páginas. Pude consultar a edição original na mesma Biblioteca Nacional. Não consta do volume, como seria de se esperar, um estudo crítico introdutório por parte do organizador, que reuniu poemas de poetas do Brasil, de 1940 a 1960, chegando quase a 100! – se não incorri em erro, contei 99. Logo de início, Fanor Cumplido Júnior (pertencente ao Corpo Diplomático brasileiro em Lisboa, um Adido Comercial), em espécie de preâmbulo, pede desculpas pelos excluídos, mas não julgados, e os enumera, e os nomeia – a maioria, hoje, no Limbo da Poesia. Daí, entra-se nos contemplados com mais ou menos páginas (João Cabral de Melo Neto, valor altamente reconhecido, mas relativamente jovem – 40 anos de idade, então, ganha 14 páginas), dependendo de sua importância, já naquela época: uma verdadeira multidão, em que Gregos, Persas e Troianos são acolhidos e se sucedem no volume, em ordem alfabética de prenome. Este, o excesso, é um dos maiores pecados de todas as antologias de contemporâneos, pois, não tendo tido tempo suficiente para amadurecimento de juízo, como, de facto, avaliar? Coloca-se o máximo possível de autores, bem porque estão vivos e poderão reagir, de algum modo, caso não compareçam na compilação. Parodiando Mallarmé: Nossos contemporâneos são nossos piores juízes, mesmo quando falam bem de nós. Ou, como falaria a Pítia: O Futuro lhes fará justiça (elevando ou rebaixando, não se sabe – o que der, estará de acordo). A grande maioria, dentre os contemplados, o tempo relegou, por um motivo ou outro, ao esquecimento, alguns ainda são lembrados, porém, poucos, de facto, tornaram-se grandes nomes da Poesia Brasileira e mesmo internacional, como João Cabral de Melo Neto, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, José Paulo Paes, Ronaldo Azeredo, José Lino Grünewald e outros poucos dos que lá estão. Mas, no caso específico dos poemas concretos, passaram, com todas as suas diferenças e peculiaridades, por um “tratamento” tipográfico (não-intencional, por certo) que anulou o que havia neles de notável e passaram acho que despercebidos. A falha, aí, deve ter sido de quem cuidou do planejamento gráfico – consta: “Orientação Gráfica de Manuel Motta Cardoso” que, certamente, não percebeu o quanto era importante a tipografia e a Gestalt dos textos concretistas, sendo que os poemas da fase dita ortodoxa ou heroica, anos 1950 em sua 2ª metade, utilizaram um tipo futura extra-bold, com predomínio da caixa-baixa. A antologia-omnibus, não tira os méritos de divulgador de Alberto da Costa e Silva, mas deu uma ideia incorreta da qualidade da poesia brasileira produzida de 1940 a 1960, apresentando uma avalanche verbal tediosa, que exigiria um árduo trabalho de garimpagem. Ao final do volume (de boa aparência gráfica), dados biográficos e o índice. Sendo o meu objeto de estudo a visualidade em poesia, obviamente preocupei-me com a Poesia Concreta que aparece na antologia, que pertence a um momento de clara transição dos integrantes do Grupo Noigandres, que já havia agregado aos três primeiros (os Campos + Pignatari), Ronaldo Azeredo, desde a revista Noigandres 3 e mais José Lino Grünewald e que estavam empenhados, com projeto mais aberto, em publicar semanalmente a página “Invenção”, no jornal Correio Paulistano. Porém, o grande mérito de divulgador de Alberto da Costa e Silva, em termos de Poesia Brasileira, foi justamente o volume supra citado de 1962, cuja publicação, em Lisboa, é considerada por E. M. de Melo e Castro, como vimos, o marco inicial do experimentalismo na poesia portuguesa, ou seja, o volume trouxe informação fundamental para os jovens poetas, sedentos justamente de experimentação, mesmo já havendo, na poesia lusa, antecedentes a serem considerados. Nesse mesmo ano de 1962, Melo e Castro publica o seu Ideogramas, livro em que constam 27 poemas, que podem ser considerados “concretos” e que terão enorme repercussão em Portugal. (Melo e Castro. Ideogramas. Lisboa: Guimarães Editores, 1962. Coleção “Poesia e Verdade”). O autor, certamente, dada a sua formação de engenheiro têxtil, sentiu as afinidades existentes com relação ao racionalismo dos componentes do Grupo Noigandres, principalmente com Haroldo de Campos. Por outro lado, na expansão da poética concretista pela Europa, Melo e Castro veio a desempenhar importante papel, a partir daquele mesmo ano. Falemos, então, da antologia Poesia Concreta, organizada, como já foi colocado, por Alberto da Costa e Silva. O nome do organizador não aparece na publicação, que tampouco contém estudo crítico introdutório ou um prólogo – traz, isto sim, o plano-piloto para poesia concreta, sem o post scriptum de 1961 (afirmação de Vladímir Maiakóvski de que, sem forma revolucionária não há arte revolucionária – resposta que os concretistas davam a seus detratores, que os acusavam de formalismo e alienação). Constam, no volume, poemas de Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Manuel Bandeira, Marcelo Moura, Pedro Xisto, Ronaldo Azeredo, e Wlademir Dias-Pino. Manuel Bandeira (1886-1968) acolheu simpaticamente a Poesia Concreta e, tomando aquilo como um modo, chegou a realizar (criticamente) alguns poucos poemas, porém, nunca foi de facto um concretista, mas sempre Manuel Bandeira ou seja, suas proezas no âmbito da Poesia Concreta eram uma demonstração de compreensão e competência. Quanto a Wlademir Dias-Pino, um pioneiro da poesia visual/experimental brasileira, teve, assim como Ferreira Gullar, que não aparece na antologia, pois já havia “criado” a dissidência do Neoconcretismo, uma curta passagem pela Poesia Concreta e, como Gullar, havia participado – 1956-57 – da Exposição Nacional de Arte Concreta, em São Paulo e no Rio de Janeiro e criou, nos anos 1960, em sua 2ª metade, o Poema-Processo. Quanto a Marcelo Moura (cearense nascido em 1941, e residindo no Reino Unido, segundo a sua nota biográfica), que comparece com 2 poemas, não consegui informações complementares, nem notícias de se continuou concreto ou, mesmo, poeta. Os poemas concretos, desta vez, estão bem melhor editados, com tipomorfia adequada, assim como diagramação a contento. Ao fim, notas biográficas e índice, mais equipe gráfica (dados técnicos). Bem apresentados, os poemas puderam ser apreciados naquilo que traziam de novidade, de invenção. Poemas da série Poetamenos, de Augusto de Campos, não comparecem, certamente pela questão cor, elemento encarecedor, mas lá estão, do autor: Ovonovelo e (F)Pluvial, e mais: Um movimento e Terra (Décio Pignatari), Nascemorre e Fala clara (Haroldo de Campos), Forma (J. L. Grünewald), Ruasol e Velocidade (Ronaldo Azeredo)… O que há a diferenciar a Poesia Concreta, em sua fase ortodoxa dos anos 1950, de outras manifestações que vinham desde o 1º Modernismo – a poética futurista, por exemplo, e alguns feitos dada – é: 1º a parcimônia vocabular, 2º uma tipomorfia notória, mas econômica e uniforme com relação à produção do grupo, 3º a imposição de uma forma geométrica rigorosa e, para completar a exacerbação racionalista que será, depois, amainada, a grande consciência de linguagem dos poetas concretos e o seu profundo conhecimento da “tradição que permaneceu viva”. A antologia Poesia Concreta, de 1962, constituiu-se em facto fundamental para a experimentação poética lusa, sendo que a sua existência foi, em grande parte, mérito de Alberto da Costa e Silva: poeta, escritor e, certamente, um promoter.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

1. A passagem de Décio Pignatari por Lisboa, anos 1950

Em meados de 1956, Décio Pignatari fez uma rápida passagem por Portugal, Lisboa, em sua volta ao Brasil, depois de dois anos na Europa, com estadas principais na França, na Alemanha e na Itália. Em mais de uma ocasião, o poeta e teórico Ernesto Manuel de Melo e Castro (E. M. de Melo e Castro, como assina os seus textos) chamou a atenção para o fato destacando, outrossim, a não-repercussão dessa passagem, apesar de se tratar de um Décio Pignatari em adiantado estado de criação da Poesia Concreta, com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, que permaneciam em São Paulo, mas mantinham, com o autor do Eupoema, uma correspondência epistolar contumaz e volumosa (chegou-se a falar em cartas de 16 páginas!, manuscritas e dactiloscritas). Décio Pignatari travou alguns poucos contactos em Lisboa, sem ter uma ideia precisa das coisas das Artes na Capital Lusa, num Portugal que ainda vivia o período ditatorial salazarista, mas não deixou em branco a sua passagem pela cidade. Acabou por dar uma entrevista, que se tornou um depoimento escrito e, penso que, para a publicação, orientou boa parte do texto introdutório e, certamente, redigiu as notas complementares, com raros momentos de imprecisão. Pois é: eu tive a oportunidade de consultar, na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa), a revista na qual o Depoimento foi publicado e que é referida na “Sinopse” do Teoria da Poesia Concreta (edição da Duas Cidades, 1975, p. 194), no ano de 1956. Trata-se da revista Graal, número 2 (Graal: Poesia. Teatro. Ficção. Ensaio. Crítica. Publicação bimestral, nº 2. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, junho-julho de 1956.). Esta foi uma publicação que teve 4 números, apenas, e todos no ano de 1956, adentrando 57. Uma revista, a começar pela capa, cheirando a século XIX – as 4 capas se repetem, com variação da cor do nome + número, com um mar de textos e poemas em versos, muito do publicado em corpos 12 e 10, sendo neste, inclusive o depoimento de Décio Pignatari. Uma revista acadêmica, com gráfica antiquada que, apesar das ilustrações e uma rara cor, como tantas outras, não apresenta nenhum arejamento. Informou-me Melo e Castro, em entrevista por e-mail, que se tratava de um publicação de direita, fascista mesmo, conservadora, por certo, facto do qual Décio Pignatari não deveria ter a menor ideia. Não sendo este o meu objeto de estudo, propriamente, não me detive no conteúdo da revista, a não ser no texto que me interessava, porém, não deixei de dar uma corrida d’olhos na publicação. O meio ao qual a revista pertencia, talvez que visse aquelas duas páginas como mera curiosidade e, por outro lado, ficaram perdidas em meio àquela verborragia sem fim. De facto, as ideias expressas de DP não tiveram repercussão, embora o poeta estivesse em pleno fervilhar de ideias, sendo que até o nome “Poesia Concreta” já havia sido proposto por Augusto de Campos, em artigo de 1955. Passemos às duas páginas do Depoimento (a revista não fala em “Entrevista”, como na referida “Sinopse”, mas em “Depoimento”: foram dadas a Décio Pignatari as páginas 208 e 209 (a numeração das páginas da revista é contínua, portanto a de nº 2 continua a de nº 1 etc, até o 4, indiciando vol. 1). No Sumário, consta em DEPOIMENTOS: Poesia Ideogrâmica ou Concreta, porém, dentro, à página 208: POESIA CONCRETA OU IDEOGRÁMICA e uma introdução em duas colunas, cujas informações – sendo algumas pontuais (origens do Grupo Noigandres, a revista de nº 2 e a série “Poetamenos”, referida como “O Poetamenos”, de Augusto de Campos) – foram, certamente, fornecidas por Décio Pignatari. O depoimento, que deve ter sido dado por DP por escrito, comparece em itens, numerados de 1 a 12, em bloco único. Já se trata de um Décio com as ideias amadurecidas, como aquele que comparecerá com os irmãos Campos no Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958). Nesses 12 itens, é utilizada a caixa-baixa, com uma exceção: a palavra Alemanha – um lapso, certamente. Aí, o poeta trata da questão do verso, fala em tradição de pesquisa e rigor, pesquisa baseada na informação em âmbito internacional, deprecia procedimentos poéticos brasílicos (chega a falar em “senilidades auri-verdes”), critica a Lírica brasileira. Enumera os grandes valores: Mallarmé, Cummings, Pound, Joyce, cita outros movimentos de outras artes, louva Apollinaire, mas critica o figurativismo de seus caligramas, pois, para a Poesia Concreta, a questão é a da estrutura que se apresenta, que a palavra “noigandres” é sinônimo de poesia e pesquisa e, no item 12 (p. 209): “hoje, mais do que nunca, ser internacionalista é o melhor modo de ser nacionalista.” E assina: “décio pignatari lisboa, julho 1956”. Aí, vêm as notas (em 2 colunas): NOTAS SOBRE OS AUTORES CITADOS (“Notas organizadas por Décio Pignatari e Goulart Nogueira”): Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Max Bill, Escola Superior da Forma – Ulm, Alemanha (Hochschule für Gestaltung: Gildewart, Tomás Maldonado, Eugénio Gomringer), Cummings, Ezra Pound (a quem é reservado o maior espaço), Pierre Boulez entrando, aí, Stockhausen. Ezra Pound já aparecia como uma figura exponencial para Décio Pignatari e os demais componentes do Grupo Noigandres e, sem disputar com Mallarmé (que não entrou no paideuma poundiano, já que o autor dos Cantos preferiu simbolistas de uma outra linha), espécie de deidade para os concretistas, o semideus Pound chega a ofuscar, de quando em vez, o autor do Un coup de dés… Pound, de facto, foi um gigante enquanto poeta, teórico, promoter, tradutor e, como tradutor, foi o grande modelo para os transcriadores brasileiros. Décio Pignatari, nessa sua estada europeia, chegou a procurar, na Itália, um Pound que ainda estava enclausurado nos EUA, no St. Elisabeth Hospital (Washington). Uma vez no Brasil, pediu a Wesley Duke Lee que o fotografasse, pois, já estava livre e na Itália, e o pintor partia em viagem para a Europa (as fotos foram feitas e publicadas). Em 1959, em sua primeira viagem à Europa, Haroldo de Campos encontrou Ezra Pound (foi recebido por ele), com quem teve uma longa conversa (uma entrevista) a qual rendeu um belíssimo texto: “I punti luminosi”, publicado mais de uma vez (Ulisseia, Hucitec). Os concretos Augusto e Haroldo de Campos chegaram a se corresponder com Ezra Pound e a enviar-lhe publicações. Parece que Pound, já cansado, não chegou a compreender a poesia que os então jovens estavam propondo – os pais (artísticos), geralmente, não gostam de se reconhecer nos filhos, nas suas crias. Mas, retornando ao depoimento de Décio Pignatari publicado na Graal 2: – Como perceber a grandeza de suas propostas naquele mar de textos e em corpo diminuto? Como bradar, ali, contra a academia? Na introdução que encima os 12 pontos do Depoimento, à página 208, temos o seguinte: “‘Graal’, como revista interessada em estabelecer diálogo crítico com as várias expressões e movimentos da arte e da cultura universais, em dar conhecimento ao público português de todos os testemunhos válidos e das sérias inquietações e orientações do nosso tempo, não podia deixar de trazer notícia deste movimento, tanto mais que se desenvolve num país da mesma língua e de cultura com tantos aspectos e raízes comuns. Por isso, rogamos a Décio Pignatari o depoimento que arquivamos a seguir, sobre as teses que defendem [os componentes do Grupo Noigandres], e que é o primeiro texto teórico a ser publicado com carácter de manifesto ou resumo das proposições fundamentais do grupo.” Certamente, pela pena de redator da revista. Repercussões teriam, como estavam tendo, no Brasil, as ideias que os concretistas estavam a divulgar nas mídias impressas. A Poesia Concreta brasileira vai repercutir em Portugal a partir de 1962, com a publicação da antologia da Poesia Concreta brasileira, organizada por Alberto da Costa e Silva, à época, secretário da Embaixada Brasileira em Lisboa. O depoimento de DP passou despercebido para aqueles que poderiam apreciá-lo. No mesmo ano de 1956 (mais para o final), por ideia e organização do Grupo Ruptura, acontece em São Paulo – Décio Pignatari no Brasil, desde julho – a Exposição Nacional de Arte Concreta, com a participação de artistas plásticos e de poetas, juntando aos que atuavam em São Paulo, os que operavam a partir do Rio de Janeiro. Esta data de 1956 é apontada como a do lançamento “oficial” da Poesia Concreta. No começo do ano seguinte, a exposição aconteceu no Rio de Janeiro, com estardalhaço da imprensa. A passagem de Décio Pignatari por Lisboa, em meados de 1956, restou como uma simples curiosidade dentro das histórias dos experimentalismos poéticos luso e brasileiro.

Omar Khouri . Lisboa . 2015. Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

Post Scriptum

Cada vez mais creio que os maiores revolucionários das linguagens eram e são os que melhor conheceram e conhecem a tradição, daí, o poderem subvertê-la. No caso específico da Poesia Concreta, a grande empreitada foi efetivada contra o verso, negando-o, assim como foi feito e declarado: “dando por encerrado o ciclo histórico do verso…” – plano-piloto para poesia concreta (in: Noigandres 4, 1958). E os concretos eram, em verdade, excelentes versemakers, como afirmou, em texto dos anos 1950, o poeta e crítico Mário Faustino, nomeando Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar (este, na época, praticando poesia concreta). Diz, precisamente, serem os referidos poetas os melhores versejadores do Brasil, depois da configuração do fenômeno João Cabral. Conhecimento, que é bom dizer, nunca perderam, nem que fosse no exercício (os Campos e Pignatari) da tradução-recriação de poemas-em-versos. O jovem Décio Pignatari foi um espantoso poeta-em-versos, como reconheceram publicamente José Lino Grünewald e Augusto de Campos (“Esses jovens querem fazer poemas em versos, no âmbito da logopeia, e desconhecem Décio Pignatari!”). Dominar o fazer-versos é estar em posse de uma tecnologia preciosa: a tecnologia do verso (para compreendê-la e até praticá-la, o que não era o caso dos poetas concretos, nos anos1950). E dentre as peças notáveis criadas em versos por Décio Pignatari, destaco (porque a citei no texto acima) Eupoema, com suas três breves estrofes (quadras). O poema é de 1951 e foi publicado em Noigandres 1, de 1952. Décio Pignatari referia-se à peça como “o meu poema fernandopessoal”, que se constitui num texto autobiográfico implacável! Vejamo-lo:

EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me

num interstício de marfim,

entre a clareza do início

e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar

de errata a penas deslinda as feias

fauces dos grifos e se refrata:

onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,

mas sim o que escrevo:

Algures Alguém

são ecos do enlevo.

Estupendo o domínio do verbal que Pignatari sempre teve, tanto quando se tratasse de poemas, em versos ou em não-versos, como na prosa metalinguística ou na prosa ficcional-artística, ou numa aula ou conferência. E, interessante é notar que, poetas de gerações posteriores, aficionados da visualidade em Poesia, possuem um considerável domínio das coisas do verbo e até, especificamente, da tecnologia do verso. E, com a Poesia Experimental portuguesa ocorre algo semelhante: dos históricos, como E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly, aos poetas de gerações posteriores, como Fernando Aguiar, o mesmo domínio do verbal e, especificamente, do verso. É importante que não se percam as antigas tecnologias, embora estejamos abertos às novas e prontos para o entendimento de todas elas.