3. Viagens: a viagem de Décio Pignatari à Europa, nos anos 1950

Há vários modos de aquisição de know-how, além da espionagem – há modos mais dignos, digamos, que não sejam o da rapinagem ou o do ato de surripiar. As viagens são muito importantes para a aquisição de know-how, de repertório (ampliação e elevação), pois constituem vivência hiper-complexa, que envolve múltiplas experiências, que vão da observação de paisagens à apreciação da arte, da culinária, aprendizado de idiomas e modos, enfim, aquisição de conhecimentos em geral e até de conhecimentos específicos. Isto acontece desde sempre e é claro que, no Mundo Grego, a coisa toma uma feição bastante notória e notável, com os livros do Pai da História, Heródoto, no século V a.C. A aquisição de know-how pode, enfim, dar-se de muitas maneiras: desde o deslocamento de uma pessoa, ou a contratação de alguém, ou o seu envio a algum lugar, a chegada de livros etc. Mas requer – sempre – esforço: adquirir conhecimento dá trabalho e inteligência é coisa que se cultiva e, assim, evita-se o processo de emburrecimento. Algumas viagens ficaram famosas dentro da História e fora dela, considerado, aqui, o universo ficcional. Mas, interessa-nos, agora, as que pertencem à História, como as dos Polo, por exemplo, pois tiveram desdobramentos, fizeram história, de facto. De importância grande para a Poesia Portuguesa foi a viagem de Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) à Itália (e Espanha), com retorno em 1526, pois, da Península Itálica ele trouxe o Soneto, forma fixa da poesia ocidental, mormente da Lírica, das que maior sucesso tiveram e que, já alcançando alta qualidade nas facturas do introdutor, atinge o apogeu na Lírica Camoniana (Camões: 1524-1580) – e o verso decassílabo. Há outros deslocamentos importantes na história Ocidental, com importantes consequências, envolvendo todas as artes. Artistas, quando se deslocavam para centros, como as cidades italianas nos séculos XV e XVI, ou Paris, no século XIX e inícios do XX, para aquisição de um Know-how somente encontrável lá. Marcel Duchamp fez o caminho inverso, deslocando-se de Paris para Nova Iorque, em 1915, afastando-se do palco principal da Primeira Guerra Mundial. Em inícios do século XX, Paris estava no centro das cogitações dos artistas, não só da América, mas da própria Europa. Tanto para portugueses como para brasileiros (e estadunidenses e outros americanos, diga-se), a capital da França era o foco – veja-se o caso, por exemplo, do grande artista português, que teve obras suas expostas em NYC, no Armory Show (1913), Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). A pintora brasileira Anita Malfatti (1889-1964) foi exceção: apontada como aquela que despertou o Brasil para o Modernismo, estudou na Alemanha e, depois, nos EUA. Somente depois da Semana de 22, mais precisamente, em 1923, rumou a Paris, com Bolsa de Estudos do Governo do Estado de São Paulo. Tarsila do Amaral (1886-1973), em Paris, inícios dos anos 20, absorveu tardia, mas consistentemente as lições do Cubismo. Em 1924, estando Blaise Cendrars em visita ao Brasil, os modernistas de São Paulo empreenderam uma viagem, espécie de excursão, às cidades ditas históricas de Minas Gerais, como Ouro Preto, São João del Rey, Congonhas do Campo, Mariana, Tiradentes e começam a empreender a redescoberta do Brasil, sendo o documento de abertura desse processo o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado pouco antes (março de 1924). Aqueles tesouros do Barroco tardio e do Rococó maravilharam os brasileiros, assistidos pelo suíço-francês Blaise Cendrars, sendo que isto repercutiu não apenas nas obras de Oswald de Andrade e de Tarsila do Amaral, como chamou a atenção dos próprios mineiros para aquela herança da época do Brasil-Colônia, e teve início o processo de valorização do Barroco (–Rococó) mineiro e doutros barrocos do Brasil, o estilo identificado como o “estilo colonial” brasileiro. Veja-se este poema de Oswald de Andrade, em louvor a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, do livro Pau-Brasil (1925), que me foi revelado por Paulo Miranda, que dele fez excelente análise:

OCASO

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas

Diplomatas como João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mais levaram do que trouxeram em termos da poesia que praticaram, se se considera apenas as produções dos contemporâneos dos lugares onde serviram. João Cabral, um viajor, manteve contatos com artistas (não somente da palavra), como Miró (sobre quem escreveu belíssimo ensaio, mas abordando-o, também, em poemas), Joan Brossa, Tàpies, Alexandre O’Neill (a quem dedica um poema obra-prima, do livro A Educação pela Pedra: “Catar Feijão”). Mas, o enriquecimento repertorial certamente ocorreu. Não basta que se empreenda uma viagem que, de qualquer modo, acrescenta. É preciso que se tenha um propósito específico, uma busca em mente. Décio Pignatari, quando se dirigiu, com a esposa recente, à Europa, tencionava não mais voltar, a ponto de carregar consigo uma quantidade apreciável de livros, praticamente a sua biblioteca da época, pois permaneceria no Velho Continente, talvez para sempre. O casal embarcou em Santos (meados de 1954), num navio meio precário, o Yapejú, em condições bastante modestas (e boa parte dessas informações foi-me fornecida pela viúva Lilla Pignatari, em inícios de 2013, numa entrevista informal, apenas anotada). Do desembarque à acomodação, em Paris, viveu, o casal, uma quase-odisseia, até que as coisas se ajeitaram. O pai de Décio Pignatari enviava, ao mês, a quantia ínfima de 100 dólares, o que na época já era muito pouco. Não houve chances para trabalho, a não ser a tradução de um livrinho, o que fez com que planos iniciais fossem mudando. Pouco mais de um ano em Paris, onde o principal contacto foi com o músico Pierre Boulez (1925-), que já havia estado no Brasil. Parece que a poesia (notória) praticada na França, à época, não interessou a Décio Pignatari (não me canso de dizer: quando a correspondência epistolar entre Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, dessa época: 1954-56, puder ser lida, esta história, também, poderá ser melhor contada). Constante o contacto com Peirre Boulez – almoços quinzenais a convite do músico (providenciais, nas próprias palavras de Pignatari). Conversas com o músico, que chegou a lhe dizer que, quando tivesse acesso a certos recursos, faria grandes coisas. Foi daí, e por influência de Décio Pignatari, que formulei o seguinte pensamento e que não deixo de repetir a jovens artistas, alunos meus ou não: – Se tiver alguma ideia, concretize-a, mesmo com os parcos recursos e as condições precárias que tiver, no momento – não espere as “condições” ideais porque, daí, a obra não se concretizará. As obras quase-sempre são feitas, mesmo que “apesar de” (vai, aí, um pouco de Nietzsche). Um tempo, cerca de seis meses, na Alemanha. Em Ulm, conheceu Eugen Gomringer (segundo semestre de 1955, e por intermédio de Tomás Maldonado), que era secretário de Max Bill na Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), escola de Design, em boa parte herdeira da Bauhaus (1919-1933: Weimar, Dessau, Berlin). Max Bill, reitor da Escola, papa da Arte Concreta, era conhecido no meio erudito brasileiro, tendo exposto no MASP e participado, como artista suíço, da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, tendo ganho o prêmio de escultura (sua Unidade tripartida, obra-prima da escultura universal de qualquer tempo, do MAM-SP passou ao MAC-USP, onde permanece). Gomringer (1925-) poeta suíço-boliviano, chamou a atenção de Décio Pignatari, 1º porque tinha um elenco de precursores semelhante ao que cultuava o Grupo Noigandres, Mallarmé acima de tudo e todos, o inaugurador de uma nova poética e, 2º, porque praticava uma poesia ultra parcimoniosa, tendo já algumas realizações propriamente “concretas”, assim como Augusto de Campos havia composto, durante o 1º semestre de 1953, a série Poetamenos – considerada o 1º conjunto de poemas concretos. Daí, o interesse passou a ser mútuo, com troca de informações e, posteriormente, contatos epistolares, como a carta em que Gomringer escreve (em francês) dizendo achar conveniente o nome Poesia Concreta, proposto por Augusto de Campos em texto publicado de 1955 (Eugen Gomringer carta a Décio Pignatari, de 30.08.1956: “Votre titre poésie concrète me plait très bien. Avant de nommer mes “poèmes” constellations, j’avais vraiment pensé de les nommer “concrets”. On pourrait bien nommer toute l’anthologie “poésie concrète”, quant à moi.” Planejava-se uma antologia internacional de poesia concreta – “Sinopse” do Movimento da Poesia Concreta Brasileira, ano de 1956, em Teoria da Poesia Concreta). Décio Pignatari ainda passa pela Itália, momento em que Lilla, grávida do primeiro filho, volta para o Brasil, para dar à luz a criança, já que as questões econômicas praticamente impediam que nascesse na Itália – Diniz Pignatari nasceu em São Paulo, no 1º semestre de 1956, e Décio na Itália. Daí, chegando aos meados de 56, ruma para o Brasil, não sem antes passar pela Espanha e por Portugal. Na Espanha, encontra-se com João Cabral de Melo Neto (veja-se o belíssimo texto de Décio Pignatari: “João Cabral”, em Errâncias. São Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 55-59), fim de primavera, poeta que já merecia grande consideração por parte dos componentes do Grupo Noigandres e que figurará, com outro brasileiro, Oswald de Andrade, no Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958). Curiosa sua passagem por Lisboa, onde teve a oportunidade de dar uma entrevista, que se transformou em depoimento e que teve publicação na revista Graal nº 2, de junho-julho de 1956. O depoimento passou despercebido pelos jovens poetas/intelectuais e não teve, portanto, o papel de inaugurador que poderia ter tido, na Terra de Fernando Pessoa. Enfim, Décio Pignatari chega ao Brasil e, com os irmãos Campos e sempre em contacto com os pintores do Grupo Ruptura, principalmente com Waldemar Cordeiro, trama o movimento, que já começa internacional, com a participação inicial de Eugen Gomringer (co-fundador) e que irá se alastrar pelo Mundo. No Brasil, ainda em 1956, acontece a Exposição Nacional de Arte Concreta, em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro, com artistas de linha construtiva, mais poetas. O nº 3 da revista Noigandres já traz o subtítulo Poesia Concreta. Décio Pignatari entra como o articulador do movimento internacional da Poesia Concreta, a partir de seus contactos com Eugen Gomringer. Em Portugal, a Poesia Concreta explodirá a partir de inícios dos anos 1960: 1962 é, propriamente, o ano-marco, com a publicação da antologia de poesia concreta brasileira, organizada por Alberto da Costa e Silva: Poesia Concreta, e com a publicação do livro de Ernesto Manuel de Melo e Castro Ideogramas e passa, depois, a assumir a denominação de Poesia Experimental (nome de importante revista, que teve 2 números: 1964 e 1966) e com características bem próprias. Diferentemente da organização a partir de um grupo, como ocorreu no Brasil, a Poesia Concreta e/ou Experimental portuguesa não contou com grupo organizado, o que implica sectarismo, mas uniu poetas cujas afinidades e espírito de experimentação propiciaram grandes feitos poéticos. Décio Pignatari, com sua viagem à Europa, mais instigou que absorveu, arquitetou, considerando o trabalho que vinha desenvolvendo com Augusto e Haroldo de Campos, o Movimento da Poesia Concreta que, no Brasil, representou um divisor de águas e que estava fadado a durar muito tempo, sofrendo notórias modificações ao longo de seu percurso.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

 

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