6. Anotações à margem – BNP: Lisboa III

 Ainda, da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, frequentador contumaz que me tornei e sendo um escrevedor compulsivo, apegado à manuscritura, enquanto que 90% dos leitores, lá, utilizam os seus leptops.

Dado o facto de os textos barrocos portugueses, dos séculos XVII e XVIII, com forte visualidade, terem sido produzidos em época em que o Brasil (os Brasis) pertencia ao Mundo Lusitano, legítimo seria reclamarem, os brasileiros, ou melhor, clamarem os poetas visuais por essa herança. [Lembro-me de ter ouvido, certa vez, em entrevista na TV Cultura de São Paulo, Caetano Veloso estranhar o fato de os paulistas não reivindicarem Chico Buarque, de pai paulista, mas, ele-mesmo, nascido no Rio de Janeiro, porém, criado em São Paulo. Eu diria que o cosmopolitismo paulistano não faz questão disto, já que pode fruir as canções de Chico, pura e simplesmente, sem nenhum problema. O artista, por sua vez, adotou definitivamente, e há muito tempo, a Cidade Maravilhosa e, se não tinha, adquiriu um sotaque Zona Sul.] O Concretismo paulista (com 2 cariocas: Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald) já colocara – bem antes dos estudos importantíssimos terem sido feitos (e publicados) por Ana Hatherly – a importância do Barroco para nossa poesia de invenção e, particularmente, Haroldo de Campos já se colocara como produtor de uma poesia barroquizante, principalmente a partir de 1952 e, depois, na prosapoética das Galáxias, a partir de 1963. Foi Haroldo de Campos o principal responsável pela mudança de uma certa opinião sobre o seiscentista Gregório de Mattos e Guerra, que lera Camões, Quevedo e Góngora. E toda uma defesa do Barroco foi feita nesse sentido [desaprovando a exclusão do estilo do Brasil-Colônia de um certo estudo célebre, que versava sobre a formação da Literatura na Terra Brasilis], culminando com a obra O sequestro do Barroco… e toda essa defesa recebeu, em parte, incentivo da 1ª geração modernista do Brasil, que teve em alta consideração o Barroco, principalmente a vertente mineira do Barroco (viagem dos modernistas de São Paulo às cidades históricas de Minas Gerais, em 1924, com o suíço-francês Blaise Cendras), mas não apenas. Acontece que toneladas de entulho esconderam essa importante herança lusa, mas algo deve ter permanecido dessa vocação de visualidade gráfica na poesia portuguesa que, aparecendo de quando em quando, teve sua primeira explosão com o Modernismo, futuristicamente, mas não apenas e, depois, configurou-se, de facto, no mundo lusófono, com as vanguardas dos anos 50 (Brasil) e 60 (Brasil e Portugal), tudo indicando a sua perenidade, mormente quando vem a adentrar as novas mídias, as novas linguagens. Concluindo: as pesquisas sobre textos barrocos, por Ana Hatherly e sua publicação (volume de 1983: A experiência do prodígio…) evidencia a vocação visual (gráfica) da poesia lusa e, obviamente, isto irá repercutir entre os poetas experimentais.

Afinidades observadas entre novas gerações (a partir dos anos 1970, em que estão bastante diferenciadas) com a geração dos que nasceram em fins dos anos 20, começos dos anos 30, sendo que a geração mais antiga, em boa parte, continuou a produzir em elevado nível, chegando poucos (Augusto de Campos no Brasil, Melo e Castro em Portugal – e poderíamos apontar, também, Ana Hatherly, que faleceu em agosto de 2015) aos dias atuais, curiosos, atuantes, produtivos. Os mais velhos se contaminaram da juventude dos mais novos e estes se valeram da experiência e repertório dos mais velhos e, nesse caminho, nessa evolução, segue a experimentação, valendo-se das novas, sem desprezar tecnologias mais antigas e ainda eficazes.

O domínio do verbal e de tecnologias específicas do verbal, como a do verso: isto deveria tirar a dúvida daqueles que perguntam “- Mas isto é poesia ou artes plásticas?” Parodiando Mário de Andrade: É Poesia tudo aquilo que o poeta quer que o seja.

Alexandre O’Neill (Lisboa 1924-1986) – nome que vi (sim, “vi” e não “ouvi”) pela primeira vez quando, tendo-me apaixonado pelo poema Catar feijão, de João Cabral de Melo Neto, obra-prima publicada entre obras-primas, no livro A Educação pela Pedra, de 1966, senti a necessidade de ler o texto impresso. Vi, então que era dedicado a alguém, para mim, completamente estranho: Alexandre O’Neill e fiquei a matutar de que origem seria. João Cabral era objeto de estudo (a sua poesia) nas aulas de Introdução aos Estudos Literários, na Letras-USP e também no curso de Jornalismo, na FAAP, e Paulo Miranda trouxe até mim a maravilha, não sei de qual das Faculdades, pois ele chegou a cursar as duas. Deveria ser o ano de 1973. No ano seguinte cheguei assistir, como ouvinte, às aulas, na USP, de um grande especialista em João Cabral: o intelectual e crítico João Alexandre Barbosa, que abordou outras joias do mesmo referido livro, como Tecendo a manhã e Fábula de um arquiteto. E Alexandre O’Neill? Bem, ficou em minha cabeça, até que aos poucos, fui desvendando o mistério, sem recorrer ao Google que, na época, não existia. A descoberta do surrealista Alexandre O’Neill em antologias de poesia concreta e experimental foi outra surpresa: os sinais gráficos que levam títulos, comentários acabaram por figurar em muitas antologias e talvez tenham algo a ver com a profissão de publicitário, que o poeta acabou por abraçar, com a maior competência e desenvoltura, expert do verbal, que era. Era amigo de João Cabral, que o tinha na maior consideração.

[E. M. de Melo e Castro, à minha pergunta sobre se havia conhecido pessoalmente o poeta, disse-me, em e-mail (10.11.2015):

“Sim. Conheci bem o Alexandre O´Neill.  Posso dizer que éramos amigos, principalmente nos últimos anos da sua vida. Almoçávamos  muitas vezes na mesma mesa num restaurante do Bairro Alto!,  mas as relações eram um tanto cerimoniosas e ele nunca me referiu nada sobre o João Cabral de Melo Neto. Acontece que pouco mais ou menos nessa época, anos 80 talvez, o João Cabral estava no Porto como Consul do Brasil e só se dava com o Alexandre e com a Sophia de Mello Breyner. Para ele parece que não havia mais poetas em Portugal… tanto que estando eu na Direção do PEN CLUBE Português, em Lisboa, recusou aceitar um jantar-homenagem para o qual o convidamos a vir a Lisboa, respondendo que se o queríamos homenagear, devíamos nós ir ao Porto!!!  Essa homenagem  nunca se realizou… mas o O´Neill nada teve a ver com isso, pois não pertencia ao PEN. O O´Neill era uma excelente pessoa, muito convivial e um ótimo publicitário, profissão que quase toda a vida teve, sendo o criador de muitos slogans que ainda hoje estão na oralidade portuguesa como por exemplo  HÁ MAR E MAR, HÁ IR E  VOLTAR para uma campanha de segurança nas praias.”

Quando, em 1985, estive em Portugal (Lisboa), com Paulo Miranda, Levei, a pedido de Augusto de Campos, várias publicações – Caixa Preta etc – para entregar, no Porto, a João Cabral. A tais publicações, juntamos algumas da Nomuque, mas não fomos ao Porto, onde o poeta era Cônsul Geral do Brasil, mas com direito a usar o título de Embaixador (que ele não quis ser). No Consulado do Brasil, em Lisboa, deram-nos o endereço do diplomata-poeta e enviamos o material e acho que chegou até o homem. Era uma chance de conhecer pessoalmente um dos poetas que eu mais admirava nesta vida, e tive mais duas e não as aproveitei: quando foi em São Paulo lançar a sua edição de poemas completos etc, da Nova Aguilar, em 1994 (Samira Chalhub e Vilma Maggio conseguiram, para mim, um volume com dedicatória), e quando ele, já aposentado, foi residir, não no Recife, não em Sevilha, mas no Rio de Janeiro (pertencia à Academia Brasileira de Letras), Bairro do Flamengo. Augusto de Campos deu-me o endereço, inclusive o telefone, mas acabei por não ir, considerando a sua quase total cegueira e a sua irritabilidade (todos diziam). Ah, não fora a aspirina…! Poucos poetas-verso do mundo lusófono estiveram no mesmo patamar que João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Seus poemas de A Educação pela Pedra se constituem em verdadeiras joias: divididos em duas partes, opera o poeta, embora moderna e secamente, como um fazedor de sonetos: cria uma tensão, lança um problema, na 1ª parte (as quadras do soneto), e resolve a tensão na 2ª (tercetos). De suas entrevistas filmadas/gravadas (tanto da juventude, como da maturidade e velhice), duas coisas me ficaram (além do cacoete “compreende?”): não é necessário poetizar o poema, pois ele já é poético, e um livro tem de ser planejado como um todo, não devendo ser um ajuntamento, uma cata de poemas.]

Vamos ao Catar feijão (que, enganosamente foi “corrigido” na edição da Nova Aguilar):

CATAR FEIJÃO

       A Alexandre O’Neill

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na fôlha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, tôda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nêle,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

   2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

Na Edição original, em A Educação pela Pedra (Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1966), o poema comparece impresso em 2 páginas, assim como os demais poemas. O livro, como um todo, é dedicado a Manuel Bandeira, “para seus oitent’anos”. Esta consulta foi feita, obviamente na BN, muito embora, em São Paulo, eu possua essa edição em minha biblioteca. Bem, voltando a Alexandre O’Neill, as suas faturas que têm feito parte de antologias de Poesia Concreta e Experimental, encontram-se num livro de 1960: Abandono Vigiado (Lisboa: Guimarães Editores), livro dedicado ao “brasuca Alexandre Eulálio” – secção da 1ª parte “Divertimento com sinais ortográficos” (p. 21-49). Os sinais enormes tomam boa parte do branco da página, chamam a atenção para o branco da página, numa série, simplesmente ótima (? ! Ç … ~ § etc ) e dedica a secção: “A Sebastião Rodrigues, que se divertiu a apurar graficamente este Divertimento. Ao compositor e aos impressores que colaboraram neste livro”. Acontece que, chamando a bela série de “divertimento”, o poeta estaria tentando uma espécie de legitimação perante o establishment literário, o que não lhe tira, de qualquer modo, o mérito. É claro que há de se considerar o lado propriamente lúdico dessas facturas, o que têm de teor humorístico, de uma qualidade sem brincadeiras. Segue 1 exemplo:

§

Tenho colo de cisne e

corpo de hipocampo

 

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq, junto à Faculdade de Belas Artes

da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

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