19. Anotações às Margens do Tejo: II.

Entre Lisboa e São Paulo há um Oceano e uma Serra, a do Mar. Isto quer dizer que uma enorme distância se verifica entre o Tejo, um rio ibérico, mas a Cara de Portugal e o Tietê, um rio totalmente paulista e que diferentemente do Tejo, que desce de Espanha e entra no mar em Portugal, o Tietê, que é a Cara de São Paulo, nasce próximo ao mar-oceano e deságua em outro rio, o Paraná, depois de rumar Noroeste pelo Estado. O Tejo parece ter menos problemas que o Tietê que, antes de se tornar um grande rio, contamina-se de dejetos humanos e detritos industriais e chega a morrer na Pauliceia, entre envenenado e sufocado pela urbe, para renascer mais adiante. As cinzas do historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda (de mocinho, representante de Klaxon no Rio de Janeiro e ensaiando ficção) não foram depositadas no Tietê, como ele desejou, pois a família considerou o rio, na altura da capital, indigno de recebê-las, e tinha razão. Só não fiquei sabendo se foram lançadas mais adiante, na região de Jaú, por exemplo, em que o curso d’água já se avolumou e apresenta uma melhor aparência. Lisboa não sufoca, acaricia o Rio. Lisboa foi centro de convergência das ansiedades modernistas lusas e de sua irradiação, assim como das façanhas da Poesia Experimental. São Paulo iniciou a revolução modernista no Brasil e foi berço da Poesia Concreta.

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Houve aproximação entre fazedores de diferentes áreas em torno de algum projeto ou por pura afinidade e comunhão de ideias, algumas ideias: poetas, músicos, artistas plásticos, tanto em Portugal como no Brasil (e em muitos outros lugares) desde antes, mas principalmente a partir dos Modernismos – reunidos ou não em torno de uma revista, como foi o caso de Orpheu, em Portugal e Klaxon, no Brasil. Colaborações entre artistas da palavra, do traço, da cor. Alguns poetas aparecem, também, como artistas plásticos e estes como poetas, nos vários momentos: é o caso de Almada-Negreiros, Lenora de Barros, Willys de Castro, Tadeu Jungle, Melo e Castro, Arnaldo Antunes, Fernando Aguiar, Ana Hatherly, Emerenciano, António Nelos, por exemplo, mostrando, quando não a ruptura de fronteiras entre as Artes, a elasticidade das mesmas. E houve artistas plásticos que até poderiam ser chamados de poetas visuais, já que cumularam de grafismos, alfabéticos ou não, os seus trabalhos. No Brasil, poderíamos citar Wesley Duke Lee, Ubirajara Ribeiro, Mira Schendel, Rubens Gerchman, e o mais-que-admirável Arthur Bispo do Rosário, com suas peculiaridades. Em Portugal temos como autor das capas de Poesia Experimental 1 e 2 Ilídio Ribeiro. João Vieira foi o autor das capas de Hidra 1 e Operação 1. Hidra 2 teve capa e projeto gráfico a cargo de Melo e Castro, que pode, além de poeta, ser considerado um artista plástico de linha construtiva. Poetas como Décio Pignatari e Augusto de Campos tiveram importante papel em planejamento gráfico e elaboração de capas. Pignatari, grande olho (tipo) gráfico é autor da capa de Noigandres 1 e de algumas outras que ficaram na história, como a do livro Um e Dois, de José Lino Grünewald e o das traduções de Cantares de Ezra Pound, além de projetos gráficos de livros inteiros, como o Soma, de Edgard Braga. As capas de Invenção, que repetem o desenho da de nº 1, com variação de cor, também são ideia de Décio Pignatari. Noigandres 4 (1958) teve capa de Hermelindo Fiaminghi, tendo sido executada pelo próprio artista, em serigrafia – Fiaminghi teve, também, grande participação na preparação gráfica de poemas para exposições. Alfredo Volpi (1896-1988), um artista nascido em Lucca, Itália, mas desde criança morando no Brasil, era uma unanimidade entre artistas plásticos e poetas: teve um seu trabalho reproduzido de modo aproximado na capa de Noigandres 5 e foi apontado pelos poetas como “o primeiro e último pintor brasileiro”. Volpi, chegou a financiar várias edições autônomas de poemas de seu amigo Ronaldo Azeredo. Alexandre Wollner (1928-), artista plástico e designer visual, que estudou na Hochschule für Gestaltung, e que é autor dos cartazes da 3ª e 4ª Bienais de São Paulo, foi o planejador gráfico da página “Invenção”, no Correio Paulistano (de janeiro de 1960 a fevereiro de 1961). Houve, de facto, desde os anos 50, uma aproximação, que continuará nos 70, a qual, além dos concretos históricos (sempre a produzir), incluirá os “intersemióticos” e afins, das novas gerações.

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Julio Plaza (1938-2003), espanhol chegado ao Brasil na 2ª metade dos anos 1960 e que rumou para Porto Rico, onde ficou, acompanhado da esposa, a artista plástica Regina Silveira, por alguns anos, acabou por se radicar em São Paulo, na 1ª metade dos anos 1970. Num certo período, Julio Plaza – podemos dizer – mais aprendeu que ensinou, ele que possuía um know-how invejável em termos de métodos e técnicas em artes plásticas/gráficas e se interessou por Poesia, a que especificamente já era praticada em São Paulo, desde os anos 1950, época do nascimento da Poesia Concreta, que muito evoluiu e se transformou com o passar do tempo, além dos projetos individuais que se foram configurando, como o de Galáxias (1963/64-1976), de Haroldo de Campos, por exemplo. Julio Plaza, em fins dos anos 1960, na oficina de Julio Pacello, havia editado Objetos, livro-de-artista constituído de pranchas que se abrem e deixam configurar formas-cores, e para o qual Augusto de Campos, solicitado, fez um poema que se integrou a um dos “objetos” – e não uma apresentação, como se haveria de esperar – obra esta que desembocaria em Poemóbiles. Na volta de Porto Rico (1973) e seu estabelecimento na cidade de São Paulo, Julio Plaza se associa a Augusto de Campos, donde brotará um trabalho importantíssimo para a Poesia, as Artes Plásticas e as Artes Gráficas do Brasil: Poemóbiles, 1974, cuja 1ª edição foi por eles mesmos custeada (houve + duas edições dessa obra), Caixa Preta, 1975, constituída de poemas de Augusto de Campos e trabalhos de Julio Plaza, sendo alguns em colaboração e além disso, constava um disco, um compacto simples, 33 RPM, com a oralização (-musicalização) de dois poemas de Augusto de Campos por Caetano Veloso. Em 1976, saiu o ReDuchamp, livro com texto de Augusto de Campos sobre Marcel Duchamp, com imagens elaboradas por Julio Plaza. Um quarto trabalho, que partiria de trechos do “Inferno de Wall Street”, de Sousândrade, chegou a ser pensado e iniciado, mas não prosseguiu. Plaza trabalhou com planejamento gráfico e diagramação, fez capas de livros, cartazes de exposições etc. Fez importantes curadorias, como a da Arte Postal, na 16ª Bienal de São Paulo, em 1981 e a de Videotexto na 17ª, participou de projetos do MAC-USP, na época em que foi diretor o grande crítico e promoter Walter Zanini. Foi professor na FAAP e na ECA-USP, onde ajudou a formar muitos artistas, hoje importantes. Do 2º semestre de 1978 ao 1º de 1981, esteve, com Regina Silveira, Donato Ferrari e Walter Zanini, à frente de um Centro de Estudos: o ASTER, por onde passaram muitos importantes artistas plásticos e poetas e intelectuais, com cursos de curta duração, espécie de “escola dos sonhos”, mas, dada a área em que veio a se localizar (Bairro das Perdizes, São Paulo), zona então puramente residencial, enfrentou dificuldades e teve de fechar. Fez uma exposição nos 70, que foi das melhores coisas que São Paulo já viu: LO(A)S MENINO(A)S, em que dialogou com Velázquez. De artista de linha construtiva, para artista conceitual, poeta intersemiótico, teórico, a pesquisador das novas tecnologias, Plaza não quis, a partir de um certo momento, diálogo com galerias e críticos e praticamente se isolou, dedicando-se ao ensino, a seu trabalho com novas mídias e à nova família que veio a constituir. Sua competência gráfica foi algo notório e notável. Do seu maravilhamento pelas palavras, nasceram vários trabalhos, no limite mesmo entre Poesia e Artes Plásticas, trabalhos estes em que explorou paronomásias, palíndromos etc. Plaza, além de ter feito planejamento gráfico de algumas importantes revistas, como Qorpo Estranho e Através, esteve presente com trabalhos, quase-sempre inéditos, em revistas que estiveram à margem do sistema editorial brasileiro, como Código, Qorpo Estranho, Artéria, Zero à Esquerda e outras. Viabilizador de projetos, Julio Plaza está ligado, além dos já citados, a edições de trabalhos, como os livros de poemas de Décio Pignatari (Poesia Pois É Poesia) e Augusto de Campos (Viva Vaia), por editora comercial (Duas Cidades) e o livro-objeto Oxigênesis, edição de autor (STRIP), de Villari Herrmann. Esteve à frente de trabalhos em Videotexto (Arte pelo Telefone), de onde saiu sua dissertação de Mestrado. Teorizou sobre livro-de-artista e arte e tecnologia, porém, seu texto teórico mais conhecido é o Tradução Intersemiótica em que, partindo da sugestão de Roman Jakobson, desenvolve sua tese de Doutorado, aplicando a Semiótica peirceana. Julio Plaza foi dessas ótimas aquisições que o Brasil fez de gente de fora. Plaza conta com excelente companhia: Giovanni Castagneto, Eliseu Visconti, Lasar Segall, Grigori Warchavchik, Alfredo Volpi, Clarice Lispector, Hans-Joachim Koellreutter, Ernesto de Fiore, Frans Weissmann, Tomie Ohtake, Manabu Mabe, Yoshiya Takaoka, Joaquim Tenreiro, Lothar Charoux, Kazmer Féjer, Mira Schendel, Fernando Lemos… País de imigração, muita gente de fora, dedicada às artes, radicou-se no Brasil.

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Um belo livro dos anos 1920, no Brasil, foi o Pathé Baby (1926), de Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) – [A. de A. Machado. Pathé Baby. Edição fac-similar. São Paulo: Secretaria Estadual da Cultura, 1982.] O livro traz prefácio de Oswald de Andrade, o que é bem sintomático, pois é uma espécie de filho da prosa oswaldiana, que havia se configurado em 1923-24, com o Memórias sentimentais de João Miramar, mas difere, primeiramente porque é menos concisa, sem deixar de sê-lo e, em segundo, porque o livro-em-si forma um todo, de par com o que de gráfico nele comparece: da tipografia às ilustrações, perfeitamente integradas ao texto, de Antônio Paim Vieira (1895-1988), um artista plástico que, de viés, havia participado da Semana de Arte Moderna de 1922, ao lado do historiador e trocista Yan de Almeida Prado. E tudo se relaciona com Cinema, a começar pelo título da obra: Pathé Baby era o nome de um projetor de filmes de 9,5 mm e o livro, motivado por anterior viagem de Alcântara Machado à Europa, apresenta-se inteiro relacionado ao Cinema, e os desenhos de Paim Vieira abordam uma tela de cinema e um conjunto musical abrindo cada secção do livro (anunciando as sessões), sendo que modificações vão sendo observadas até ao final. O texto é primoroso enquanto composição, em grande parte, paratática, o que faz com que aquela prosa se aproxime da poesia. Alcântara Machado chega a fazer parte da equipe que levou adiante a Revista de Antropofagia, a mais radical das revistas de nosso 1º Modernismo. Sua principal obra, porém, é o internacionalista Pathé Baby e não outros textos em que pinta histórias que se passam na Pauliceia. Muito já se disse que o Cinema havia ficado (como ficou) fora da Semana de 22 – explicação plausível não é difícil de se dar: simplesmente não havia pessoas ligadas a cinema entre os que planejaram e participaram da Semana, mas a arte da Cinematografia (que nasceu na efervescência da virada do século XIX para o XX e que já levava multidões às salas) era muitíssimo apreciada por todos, e o seu elogio comparece no Editorial do nº 1 de Klaxon. O livro Pathé Baby não contou muito com consideração por parte dos concretistas, já que havia maior radicalidade, além da anterioridade, na obra de Oswald de Andrade, mas penso que deva ser apontado como um passo importante para a valorização da coisa gráfica no Brasil (é também considerado o melhor trabalho de Paim Vieira, que não era propriamente um modernista) e do livro em colaboração inteiro (como já vinha acontecendo), como que antecipando essa prática do “livro-de-artista” e apresentando relação inclusive com a poesia intersemiótica. Leiam-se os textos de Valêncio Xavier, sobre o Pathé Baby, Valêncio (1933-2008) – um experimentador da prosa, autor do romance-invenção O mez da gripe – na revista Cult 47: “Cinema escrito”. Também, o texto “A grafia imagética de Antônio de Alcântara Machado”, da escritora e crítica de literatura Neiva Pitta Kadota, na revista FACOM 10. É preciso rever Antônio de Alcântara Machado, via Pathé Baby, um belo livro modernista.

Omar Khouri . Lisboa . 2015 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

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