37. (De São Paulo de Piratininga) Memorial : Livre-Docência . 2007

O lugar onde eu nasci nasceu-me

[…]

Décio Pignatari

No universo de Eros, colecionei derrotas cartaginesas, obtive diversas vitórias dePirro, cheguei até a ganhar alguns presentes de grego. No final das contas, entre per­das e ganhos estou, por inteiro, salvo e carente.

Dr. Ângelo Monaqueu

[…]

O que em mim sente ‘stá pensando.

[…]

F. Pessoa

 

Há um eu em mim que já morreu…

Dr. Ângelo Monaqueu

Sou um descendente em linha direta de Abraão. Isto não me faz melhor nem pior que ninguém. É só uma constatação. Eu só quero dizer que a árvore genealógica à qual pertenço chega ao Patriarca. Todos chegam até lá e mais além, só que eu sei de minhas origens. […] Trazia as marcas de uma cultura milenar: o mundo semítico, que não era apenas dos judeus. Também dos de cultura árabe, mesmo que não-islâmi­ca. Família cristã: grega-ortodoxa. Sem problemas com a Igreja Católica, na qual fui batizado. Isso tudo, sem esquecer a parte fenícia, que me faz parente não só do herói Édipo, como do deus Dioniso!

Omar Khouri. De uma crônica

I. SITUANDO-ME…

Nasci no pós-Segunda Guerra Mundial, em Pirajuí, antiga São Sebastião do Pouso Alegre, cidade localizada na Região Noroeste do Estado de São Paulo e que tem tudo a ver com a hoje decadente-quase-morta Estrada-de-Ferro NOB que, partindo de Bauru e chegando ao então Mato Grosso, adentrava o ter­ritório boliviano. Pirajuí significa, em Tupi, “Rio do Peixe Dourado”; o rio, aí, cor­responde ao ‘hy’ da grafia antiga = ‘água’ (Pirajuhy), o que não há na sua quase homônima Piraju, que fica lá pelos lados de Ipauçu e Ourinhos, pelas bandas do Paranapanema, divisa de SP com Paraná.

A pequena cidade, que já foi o maior município cafeeiro do mundo, situa-se, para ficar bem claro, entre Presidente Alves e Guarantã. Se for necessária maior clareza, direi: situa-se entre Bauru e Lins, ao longo da Rodovia Marechal Ron­don, o que sinaliza a desimportância da ferrovia para a região, de algumas déca­das para cá (e pensar que cidades nasceram em função da expansão cafeeira que, às vezes, foi até precedida pela implantação da ferrovia…).

Nascente em fins do século XIX e inícios do XX, só adquiriu foro de Município em 1915, a São Sebastião do Pouso Alegre. Pirajuí: não era assim que os índios da região, que nem eram do grupo Tupi, a chamavam. Nome pós-posto pelo “civilizador” consultando vocabulário Tupi, como aconteceu com muitos outros municípios brasileiros, não todos. Os Caingangues, não sabiam do seu futuro o que aconteceria ali: foram quase extintos (em Avaí, pequena cidade situada ao lado, há uma fazenda-reserva indígena supervisionada pela FUNAI).

Pirajuí, nas primeiras décadas do século passado, nascente e próspera, era uma espécie de miniatura da capital do Estado, com gente vinda de todas as partes do mundo: do Extremo-Oriente às Europas Oriental e Centro-Ocidental, passan­do pelas margens do Mediterrâneo Oriental, onde se localizava a Antiga Fení­cia, hoje Líbano, terra de meus avós maternos e de meu pai. O fato de a região médio-oriental estar (ficou até 1918) sob o domínio do Império Turco, fez com que, por um equívoco – pois se trata de uma outra etnia – os árabes libaneses e também sírios (semitas, por um lado descendentes em linha direta de Abraão) fossem chamados de ‘turcos’, coisa que os descendentes, até hoje têm de ar­rastar: … essa pecha. Ah!

Além do nome forjado, a cidade passou pela imposição de um plano urbanístico que lhe dá singularidade – terra de ladeiras que é (via que sobe, via que desce: uma-e-a-mesma: Heráclito de Éfeso. Dependendo de onde se encontre: dificul­dade ou facilidade) – um plano ortogonal, com quarteirões regulares de 100 X 100 m.

Meu avô Rachid Cury (meu pai era Khouri: a mesma cousa em árabe, grafias diferentes para padre na língua de Gibran, vocábulo que se inicia com aspiração e indicia a prática do Cristianismo), chamado Chico Turco, abriu loja em Pirajuí, em 1912 (é o que consta nos registros da Associação Comercial de São Paulo). Fez fortuna, sofreu três golpes financeiros, sendo um de grande monta. Caiu em pé, mas caiu. Isto gerou uma espécie de acovardamento, na família, para os negócios, agravado pela sua autoridade castradora (acentuada pelo seu nervo­sismo após os revezes financeiros, mais o aparecimento e agravamento de um diabetes que o levaria à mutilação e à morte mais ou menos prematura).

Numa família que chegou a ter doze filhos, os hóspedes temporários eram uma constante: parentes mais ou menos próximos, vindos do Líbano e que na casa ficavam de três meses a três anos ou mais. A casa foi sendo construída aos pou­cos e ainda está lá – e dá a idéia do que imagino ter sido o palácio de Minos, o labirinto de Creta. Chegou a ter onze dormitórios e duas cozinhas, sendo uma caipira, com fogão a lenha e tudo o mais, dois pátios internos, sendo um coberto, salas, um quintal, loja acoplada – secos e molhados, como se dizia: vendia de tudo: de sardinha salgada a tecidos, passando por gasolina. Pé-direito altíssimo (deveria ser uma exigência da ‘Saúde Pública’, dado o calor da região): 5 metros. Portas e janelas imensas. Olhando uma daquelas portas, um alienígena diria: “Aqui moram gigantes!” Hoje, a casa, mesmo inteira, passou por reformas par­ciais que, em tudo, contribuíram para descaracterizá-la (as antigas decorações picturais foram removidas ou remontadas): foi toda uma operação de “kitschiza­ção” em nome do conforto da vida moderna, assim como ocorreu com quase todas as casas velhas que sobreviveram às demolições, em Pirajuí e região. A grande mesa onde centenas de pessoas tomaram suas refeições – e os convida­dos, durante décadas, eram diários – ainda está lá e, de quando em vez, ainda é ativada pelas minhas duas tias solteiras que moram na casa. Esse costume de receber pessoas oferecendo-lhes comida – lembranças da época das caravanas de comerciantes? – parece que herdei daí.

Minha mãe era a mais bela das filhas de meus avós e por demais prestimosa: nascida em Pirajuí, em 1925, Salme Cury (consta no registro de nascimento, como queria meu avô; Odete no dia-a-dia, como queria minha avó), desde muito pequena auxiliava a mãe em muitos dos afazeres domésticos e, aos doze anos, já se podia deixar a cozinha em suas mãos: mãos e cérebro que praticariam essa alquimia da culinária por mais de 65 anos, produzindo maravilhas! Cozia para deuses – doce ilusão! Ambrosia. Pouco estudada (o estudo, além de lei­tura e operações aritméticas, não era valorizado em casa de seu pai), possuía e possui um português correto, além de falar o árabe correntemente. Gostava muito de ler, principalmente crônicas, o que fez muitas vezes para filhos atentos. Cantava por tristeza e nervosismo, sempre músicas incomuns e até hoje, como quando recentemente a surpreendi cantando num francês correto uma velha e triste canção. Costumava cantar “The last rose of summer” (célebre canção de origem irlandesa, de poema de Thomas Moore), porém numa versão portuguesa (derradeira rosa de verão / tu iluminas o meu jardim / já murcharam tuas com­panheiras…), e aquilo me matava jun(s)tamente… de tristeza.

Conduta caseira exemplar desde menina, acabou por engrossar a delgada es­tirpe de mulheres-filantropos-excepcionais da família, assim como minha avó Lula e minha tia Salime (tão educada que, poucas horas antes de morrer, no hospital em Pederneiras, pediu-me desculpas por não poder me dar atenção, pois, sedada, não conseguia conter o sono): nascidas para servir, antes ao outro que a si próprias – minha mãe nunca se sentava à mesa. Antes, servia, saciando a fome de todos, com ou sem visitas, e assim era nas ocasiões raras em que meu pai trazia convidados e ela, sozinha, preparava raros jantares que até hoje não me saem da memória. Encarnando a imagem da mãe-santa, ela sempre o foi sob muitos aspectos: mulher-de-um-só-casamento, mãe-acima-de-tudo, os-outros-antes-de-si. Tanto que, nas raras vezes em que a surpreendo numa mal­dadezinha – direito a que todos têm e não exercem por se auto-reprimirem – ou numa quase-mesquinheza, ela que é toda-generosidade, fico chocado e só o pensar que ela também é humana me tira do estado de estupefação.

De seus inúmeros pretendentes, todos de origem árabe-libanesa (ela, hoje, so­brevivente a todos, o que colabora para provar que as mulheres, via de regra, duram mais), acabou optando por aquele que seria meu pai – Sáber, nome que significa em árabe ‘ser paciente’ (e ele o era), e que pessoas comuns, aqui no Brasil, jamais pronunciaram de modo aceitável. Tendo nascido no sul do Líbano em 1914, desembarcou com um irmão e dois primos, em 1º de fevereiro de 1930, em Santos, radicando-se no interior do Estado de São Paulo, onde foi hospedado por irmãos que aqui já se encontravam. Meus pais se casaram em Pirajuí, com padre da Igreja Grega-Ortodoxa levado de São Paulo e tudo o mais, em outubro de 1945.

Sou o segundo de cinco filhos homens, e fui dado à luz em casa de meus avós – assim como meu irmão mais velho – na madrugada do dia 21 de junho de 1948. Mais tarde fiquei sabendo que, do 21 de junho, também eram Machado de Assis (autor do livro que eu gostaria de ter escrito: Memórias Póstumas de Brás Cu­bas) e Jean-Paul Sartre (cuja obra ficcional li e gostei muito, numa época em que era menos exigente, sendo que o seu autobiográfico As Palavras li depois de trinta anos de tê-lo adquirido e o detestei). Este último, uma de minhas fixações da adolescência que, durante o curso Clássico, mereceu uma campanha pró: LEIA SARTRE, para provocar mestres conservadores (excelentes professores, diga-se), que achavam que mocinhos, meninotes ainda não possuíam maturi­dade intelectual para lê-lo. O primeiro, Machado! – sempre o primeiro – continua a habitar a minha psiqué de modo denso e paradigmal: aqui e ali tento ver em mim aspectos dele (sonhar não é proibido). De qualquer modo, é um escritor que, muitíssimo bom, vai ficando melhor ainda, quanto mais se nos passam os anos. Também, com colegas, desencadeei a campanha VEJA A ARTE COM BONS OLHOS – a favor da representação do nu nas Artes Plásticas! – que foi completada com uma exposição no Salão Nobre do IEDAP (Instituto de Educa­ção ‘Dr. Alfredo Pujol’). Com toda a revolução das Artes, em plena época da Arte Conceitual, eu ainda estava preocupado com figurativismo!

Eu, o mais feminino dos filhos de meus pais – todos do sexo masculino – chamar-me-ia Omar Cury e Khouri. Porém, para evitar redundância, passei a me chamar Omar Khouri, suprimido o nome de minha mãe; o pré-nome, mais comum entre árabes muçulmanos, aceitei com a maior boa-vontade, assim que despertei para uma vida mais conseqüente e, sabendo que poderia significar “o de longa vida”, “construtor” e “o de boas palavras”, optei pelas três interpretações!

Preconceito foi algo que sofri desde muito cedo, porém, a palavra vim a co-nhecer bem mais tarde. Desde pequeno quiseram me fazer crer que, em sendo descendente de árabes – que no Brasil são chamados TURCOS, assim como na Argentina, disse-me Borges, o Jorge Luis, o escritor autor do ALEF, o filho de dona Leonor Acevedo de Borges – eu era diferente: vinha de uma família perten­cente a uma etnia que comia criancinhas (depois eu vim a saber que os comunis-tas também), possuía traços diferentes, olhos grandes, nariz enorme – nariz de tucano (a ave ela-mesma) como cheguei a ouvir inúmeras vezes. No mais, era um comedor de quibe! Essa parte do quibe é a melhor…

De criança semi-prodígio a ser entristecido: dura adolescência! Não me lembro de uma época em que não desenhasse; tampouco tenho memória de minha alfa­betização. Escola: tudo começou no Jardim de Infância, no Grupo Escolar ‘Olavo Bilac’, de Pirajuí. Porém, meu gosto pela Poesia não vem do ilustre parnasiano, de quem soube primeiramente que batalhou pelo serviço militar obrigatório, o qual nem cheguei a fazer por morar, na época, em zona rural. Isto acabou – cer­tamente – por contribuir para que eu, em meio aos humanos, me sentisse como um extraterrestre. Em verdade eu era detentor de um sopro cardíaco, como se dizia. Depois soube: um prolapso mitral. O médico preferiu fazer valer o primeiro motivo para dispensar-me de ser soldado-da-Pátria. De Bilac soube depois: era o autor da letra do Hino à Bandeira e do soneto que começa assim: “Última flor do Lácio, inculta e bela”… Bem mais tarde é que vim a admitir que o arrogante Bilac, que tinha a forma como fôrma, possuía alguns belíssimos sonetos, memo­ráveis mesmo, como o “Vila Rica”, entre outros tantos.

Lembro-me dos nomes de todas as minhas professoras (meus mestres foram mulheres em cerca de 90%): do Jardim da Infância à Pós-Graduação – de Zélia Genovez a Anna Lia Prado e Lúcia Santaella. Minha primeira professora: Dona Zélia Genovez (ou teria sido dona Bela?), cujo Z de sua assinatura em meu diplo­minha de Jardim da Infância (que até hoje conservo) não me saiu da memória… Primeiro contato mesmo com textos bem escritos foi com as leituras que minha mãe fazia para os filhos – todos em roda – ouvindo com interesse as crônicas de Rachel de Queiroz e David Nasser (mais tarde vim a saber do lado cafajeste desse jornalista-escritor, mas também de suas memoráveis letras de canções, no universo da Música Popular). Primeiramente, achei que seria pintor e, autodi­daticamente, fui-me preparando para o suposto destino, o que era reforçado, durante o ginasial, no encontro com colegas igualmente interessados pelas Artes e nas magníficas aulas da professora Maud Pires Arruda, que teve parte impor­tante em minha educação visual: em suas aulas pude ver, em reproduções, o que de melhor a Humanidade havia feito em termos de Artes Plásticas.

Como eu me achava feio! E era de uma magreza de fazer inveja a qualquer magro (odiei a foto feita em 1969 durante a entrega dos certificados, quando ter­minei o curso Clássico: somente me reconciliei com aquela imagem trinta anos depois, quando o fotógrafo, em liquidação, enviou para minha família aquela foto que estava entre os encalhes da casa comercial: O Foto-Reportagem Volpatto, de Pirajuí. Havia um espelho, em casa de meu tio Pedro Rached, um espelho colocado de tal modo que me iluminava de um jeito que eu me achava bonito, lindo mesmo! Mas era só ali. No mais, tudo me fazia crer que eu era medonho, principalmente quando comparado com os habitantes de minha casa: pais lindos e irmãos – todos homens – igualmente. Até hoje estou em busca do fotógrafo que descubra para mim uma luz ideal, luz esta que faça, do sapo, príncipe, de Woody Allen um Paul Newman!). Um nariz que tanto maior parecia, quanto mais eu crescia e a magreza se impunha. Da composição de Juca Chaves – “Nasal Sensual” – ao famoso poema de Bocage, via a mim mesmo por inteiro. Elegi como meu, o poema do bardo português que, mais tarde viria a mim em forma de poeta do erótico e mesmo do escatológico:

Nariz, nariz e nariz

Nariz que nunca se acaba,

Nariz que se ele desaba

Fará o mundo infeliz!

Nariz que Newton não quis

Descrever-lhe a diagonal,

Nariz de massa infernal,

Que, se o cálculo não erra,

Posto entre o Sol e a Terra

Faria eclipse total.

Uma obra-prima! Ainda faço algo que se iguale a esta peça do luso vate.

Tenho, a partir de então, experimentado a vida-a-um. Se pelo menos houvesse uma morta amada como no Camões lírico ou em Edgar Allan Poe… E, então, se eu pudesse, com Camões, dizer: “Quando de minhas mágoas a comprida…” Basta! Há questões mais importantes no mundo do que a minha incapacidade de encontrar uma cara-metade. Porém, devo falar, mesmo que brevemente, sobre o meu prolapso mitral, que antigamente se dizia simplesmente “sopro”; sopro que me trouxe grandes transtornos e o conhecimento de alguns médicos célebres… além de uma taquicardia que me deixou complexado e medroso, o que atrasou de muitos anos a minha iniciação sexual. Ufa! Porém, só não contava com a ne­cessidade, em janeiro de 2006, de uma cirurgia que implantaria em mim uma vál­vula artificial metálica: era grande o cansaço cardíaco e exames mais detalhados conduziram-me à mesa de operação. Tendo como clínico o Dr. Michel Batlouni e como cirurgião o Dr. Camilo Abdulmassih, podia estar, como estive, tranqüilo e tudo saiu muito bem.

São Paulo: a cidade de meus sonhos! A primeira vez em que estive na Paulicéia foi em 1954, com toda a minha família, menos o irmão Válter, que só nasceria em 1961. Foi tudo um deslumbramento nos meus seis anos de idade: o Pa-lace Hotel na rua Florêncio de Abreu, com o garçom que recolheu o meu prato enquanto que, curioso, observava o movimento da rua de uma das janelas do restaurante, o saguão de um prédio no largo do Paissandu, o Butantã, a praça Buenos Aires em frente à casa de uma tia e a primeira vez em que vi televisão: somente um estranho chuvisco.

MASP, ainda na 7 de Abril, anos 60: uma das experiências mais gratificantes de toda minha vida. De lá para cá, devo ter ido ao museu mais de quatrocentas ve-zes, até para ver um único quadro do pequeno-grande acervo. Depois descobri o MAC-USP, com o núcleo principal do acervo no 3º andar do edifício da Bienal, no Parque do Ibirapuera, época em que seu diretor era o Prof. Walter Zanini: grande gestão!

Sempre pensando na pintura, cursei o colegial Clássico em Pirajuí e ingressei, a seguir, na Faculdade de História da USP (já na Cidade Universitária): era, então, a época da Ditadura Médici, o que repercutia negativamente em tudo: não só no andamento do curso, como no clima geral do País, já que não se viam dis­cussões livres sobre quaisquer assuntos.

A História havia entrado em minha vida por conta de uma História da Arte, e quase cheguei a não tê-la no curso da USP. Angariei conhecimentos – estu­dei muito Modernismo Brasileiro (principalmente no IEB – Instituto de Estudos Brasileiros – que se situava no prédio da Geografia e História, assim como o MAE: Museu de Arqueologia e Etnologia), conquistei amigos.

Época das mais doloridas de minha vida, ainda sofria com a morte prematura de meu pai (o que se deu em abril de 1969), amargava um amor impossível (e isto durante uns 15 anos. Nem sei como suportei o estar-só – “Se eu não vejo”… sobrevivi) e padecia de falta crônica de dinheiro (e só vim a aceitar tê-lo, depois dos quarenta-anos: aí, eu me permiti ter um salário melhor, que fosse além de minhas necessidades primárias).

Aprendi, a duras penas, a ser uma boa pessoa e uma pessoa boa: incapaz de praticar atos atentatórios à integridade físico-espiritual do próximo. Penso ser isto menos fruto de uma bondade interna, que medo da justiça divina. Há mais de quatro décadas não sei o que seja um dia sem dor física, indisposição ou tristeza, porém isto não tem impedido a mim de tirar algum proveito deste pro­cesso incerto chamado vida. Felicidade, para mim, é vocação, não passa pelo sexo, tampouco, pelo dinheiro. Não acredito que o ser humano tenha nascido para ser feliz. Felicidade não é pra quem quer, mas para quem tem a vocação-para-ser-feliz. São raros os humanos que têm essa disposição-para-o-estar-bem-constantemente-no-mundo. Sei que Marcel Duchamp tinha essa capacidade e talvez mais alguns outros. E olha que ele era um hipercivilizado, o que retira 99% de chance do referido estar-bem. No mais, o que nós humanos inteligentes e ilustrados podemos fazer é administrar bem este estar-sendo. Por outro lado, tive muitos momentos de grande contentamento: sempre que conversava sobre as artes ou praticava alguma delas, como professor, em ensino do então 1º grau, como estudante, durante 7 anos, na pós-graduação da PUC-SP e como editor de revistas de poesia. Percebi que, no amor, um curto período de sedução, vale mais, é mais intenso, que qualquer ato que se lhe suceda… Mas que suceda!

Não-ateu, chego a considerar-me um politeísta da nova era e acho mais que interessante o culto católico aos santos – incluindo aí toda a representação por imagens (considero-me não um idólatra, mas um iconófilo) – ressaltando o culto à Virgem-Maria. Como todo bom brasileiro, sou devoto de Nossa Senhora Apa­recida.

Formei-me em História (bacharel e licenciado) e encontrei-me desempregado – foi muitíssimo difícil para mim o verdadeiro encaminhamento profissional, o que só aconteceu através de concursos. Livros: uma de minhas paixões: o possuí-los muito representava e sempre que pude eu os fui comprando até formar uma bi-blioteca razoável. Quem gosta adquire, nem que seja apenas para ter – mal sabe que é uma das piores heranças que se podem deixar, já que toda biblioteca tem a cara de quem a formou e que um herdeiro tomará a herança, não como um presente, mas como um encargo. Há livro que, tendo-o comprado, li-o apenas trinta anos depois (foi o caso do já mencionado As Palavras, de Sartre). Em­presto livros: tive a chance de possuí-los e franqueio minha biblioteca a alunos e amigos. Não coloco mais – faz muito tempo – nome em livros, para que, se al­guém os encontrar, possa deles tomar posse: livros aparentemente sem história, pois sequer admito rabiscá-los ou fazer neles anotações.

Na mesma época em que me formei, fui-me enveredando para o campo da Poe­sia e de uma poesia que valorizava a visualidade, o que tinha tudo a ver comigo: a descoberta da Poesia Concreta foi o fato mais importante de minha vida (for­mação) artística. Isto significa que abandonei a pintura que vinha praticando e isto se deu em 1974, quando pintei um último quadro. Antes, porém, em 1973, havia pintado uma Via-Sacra: as 14 estações em 28 quadros (descobri recente­mente que possuo 27 dos 28 e quase todos em bom estado de conservação).

Minha breve carreira como pintor rendeu-me, pelo menos, uma abordagem crítica consistente de Paulo Miranda, a propósito da tal “Via-Sacra” a qual foi exposta, primeiramente, em Pirajuí, por duas vezes, uma delas na Igreja Nossa Senhora Aparecida, ocasião em que falei sobre, após a celebração de uma missa. Eu a havia pintado em ago./set. de 1973e a expus, a seguir, na então Fundação Educacional de Bauru (absorvida, a seguir, pela UNESP), por convite e esforço de José Eduardo de Luna Cabral e da professora Layr, depois Layrana, pintora. A exposição chamou-se JESUS & OUTROS – pinturas de Omar Khouri. Realizou-se em 1974 e trouxe o tal texto num modesto folder, por mim financiado, impresso em papel barato, numa tipografia pirajuiense (vide ANEXO 1).

No mesmo ano de 1974 publiquei um livrinho de poemas visuais: Jogos e Fazi­mentos, pela editora por mim criada e nunca registrada, a Nomuque Edições. Cheguei a enviar parte dos 53 exemplares a algumas pessoas e tive um retorno até que interessante, como o que me falou dele Augusto de Campos, apontando duas ou três páginas realmente boas. Mais tarde, soube que Haroldo de Campos havia falado sobre mim, considerando o livrinho, que era “aresta e seda”. Hoje, penso que o melhor do livrinho seja o título e o poema visual “Soneto”, que ela­borei a partir de uma foto da professora Maud Pires Arruda. Porém, o livro me favoreceu na conquista de belas amizades e me abriu caminho para o afazer de editor de revistas de poesia (ARTÉRIA, ZERO À ESQUERDA…), uma das minhas fontes de prazer.

Da poesia visual – intersemiótica, eu diria – cheguei à verbal, adquirindo pleno conhecimento do manejar a estrutura-verso (caminho inverso do de meus ído­los). Tentei, também, uma prosa experimental, que me rendeu vários pequenos livros-objeto, como os da série De Amor e Merda, assinados por uma espécie de alter-ego denominado Dr. Ângelo Monaqueu (Mensageiro Solitário). Na época (anos 90), escrevi – sem que me solicitassem – um depoimento, cuja publicação foi recusada em duas ocasiões e hoje até penso que as recusas tenham sido justas: é preciso reformular o texto.

Planejei, com José Luiz Valero Figueiredo, uma exposição em Bauru, a qual não aconteceu. Segue o tal projeto:

Exposição de pranchas do ‘Livro do Dr. Ângelo Monaqueu’ : Bauru . 1997.

  1. 16 pranchas, considerando os quatro volumes do De Amor e Merda, as quais terão o dobro do tamanho, sendo a parte de texto cerrado reestruturada em fun­ção da maneira como as pranchas serão expostas.
  2. Texto de 20 linhas sobre projeto/apresentação da exposição.
  3. Pranchas estarão protegidas por acrílico.
  4. Curadoria: José Luiz Valero Figueiredo. Apresentação: Prof. Omar Khouri.
  5. Feitura de convites/release: divulgação.
  6. Conferência de abertura, versando sobre o projeto do livro e sobre o que cons-ta especificamente da exposição.

Em Curitiba, havia feito um lançamento sui generis do livro:

Curitiba, maio de 1996, dentro da programação do PERHAPPINESS VIII

Instrutor: Omar Khouri

Poderia ser feito o lançamento da obra do Dr. Ângelo Monaqueu – De Amor e Merda – em Curitiba. Seria um lançamento diferente: quem comparecesse, apenas poderia apreciar os três volumes, sem pensar em adquiri-los, pois não existiriam exemplares disponíveis para venda. Os três exemplares utilizados para o lançamento seriam encaminhados a uma das bibliotecas da cidade. O depoimento que estou enviando, se publicado, informará os interessados sobre o projeto da obra, que é apresentada pelo Prof. Omar Khouri.

Foi o que, de fato, ocorreu (eram, então, três volumes). Depois publiquei Poemas: sob a égide de Eros, um livro de poemas eróticos e maledicentes, sendo que cada poema era acompanhado de comentários críticos. Também escrevi um depoimento, que distribuí por ocasião do lançamento da 2ª edição, agora em moldes industriais e depois, continuei a distribuí-lo (vide ANEXO 2).

Daí, saltei para o texto-justificativa – uma simulação de carta – cuja autoria é atribuída à mãe do autor-ficcional Dr. Ângelo Monaqueu (vide ANEXO 3). O quase-total silêncio das mídias fez com que o livro fosse um fracasso de vendas. Caso acontecesse uma boa divulgação, teria o retorno pecuniário necessário para fazer outras edições… O livro espera leitores. Está em busca do leitor ideal, de quem lhe faça uma leitura curiosa, amorosa e com rigor.

Nossa casa brasileira em Pirajuí não cultivou o futebol, já que meu pai não che­gou a gostar do esporte do rei Pelé e nenhum dos filhos chegou a praticá-lo. Somente em ocasiões especiais assistíamos aos jogos, como os das Copas. Em 1958, ocasião da primeira conquista brasileira, seguimos tudo pelo rádio. Ouvi muito rádio em fins dos 50 e inícios dos 60, em casa de minha avó: um Philipps holandês, e eram as rádios Mayrink Veiga e a Bandeirantes. Descobri a Bossa Nova e a amei! Cheguei, muito novo ainda, a ir a bailes só para ouvir o “Samba de uma nota só”, de Jobim-Newton Mendonça, em versão com crooner e grande orquestra (!). Curti bailes, dancei… até os 22 apenas. Carnaval-de-salão: mar­chas, samba e frevo: nesta ordem. Sambas maiores vim a descobrir mais tarde, coisa de ser-intelectualizado. A TV só chegou em Pirajuí lá pelos meados dos anos 60, o que me permitiu assistir a alguns festivais, que ficaram célebres. Daí é que vi muito cinema e muita coisa boa que passava principalmente nas sessões noturnas das terças-feiras: Bergman, Antonionni, Fellini, Hitchcock (o único cineasta que justificaria uma volta ao interesse… para re-assistir aos seus filmes). Da Bossa nova fui seguindo a MPB, passando pela Tropicália (e salve Rogério Duprat!), Walter Franco, Arrigo Barnabé, até Arnaldo Antunes. Con­comitantemente, Beatles e toda a onda internacional a partir de inícios dos 60. Da música erudita, inúmeros compositores: rádio, discos, audições que tinham lugar na cidade, recitais com músicos visitantes. Dos grandes nomes da Música, Chopin, sempre, mais Vivaldi, Bach, Mozart, Debussy, Stravinski. Músicos como Satie, Schoenberg, Webern e Cage, só mais tarde vim a conhecer. Não che-guei a ter uma formação musical – o que era comum entre os de classe média em Pirajuí ou qualquer cidade do interior com mais de 15 mil habitantes. Tentei piano, vieram-me com acordeão e, daí, desisti. Álcool não entrava em minha casa. Baralho tampouco, dado o fato de o meu pai ser uma fanático carteador, o que nos trouxe graves problemas de ordem financeira (demorou para que eu vencesse o trauma). Artes Plásticas: sempre! Foram poucas as minhas viagens pelo Brasil e pelo mundo e hoje sinto-me acuado pela conjuntura internacional e a aversão que existe com relação a estrangeiros, a certos estrangeiros: tenho, com isto, evitado constrangimentos em aeroportos.

A metalinguagem escrita melhor a desenvolvi a partir da Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica na PUC-SP. A partir de fins de janeiro de 2000 passei a colaborar como cronista, a pedido de meu amigo Marcelo Pavanato, no se­manário O ALFINETE, coisa que continuo a fazer até os dias de hoje (antes, nos anos 70, havia colaborado bem mais modestamente no CORREIO DE PIRAJUÍ, comandado pelo Sr. Basílio Autran). E, dada a liberdade que sempre tive, tenho escrito sobre tudo o que me interessa, desenvolvendo, às vezes, uma tarefa didática mesmo, e me saíram cerca de trezentos artigos sobre poesia, prosa, artes visuais, cinema, música, ensino, comunicação etc. Foi assim que aprendi a fazer – ainda que para divulgação – prosa metalingüística. De artista plástico (que sonhei vir-a-ser) a poeta-visual e verbal e prosador-experimentador con­taminado pelo vírus da literatura fescenina: larga produção, que procuro veicular quase sempre em pequeníssimas tiragens.

Editei revistas, fui impressor-serígrafo, organizei exposições de poesia interse­miótica. Por diversas ocasiões cheguei a pensar na retomada da pintura e até fiz alguns ensaios, mas ficou nisto. (Ainda não descartei em definitivo a coisa da pintura e até pensei em pseudônimo ou heterônimo).

No campo profissional, encontrei-me ensinando História, para classes de 5ª à 8ª série (uma História impregnada de Artes Plásticas, Poesia e Música) na Rede Pública, nos onze anos que passei em minha primeira escola como professor efe­tivo: EEPG “Almirante Custódio José de Mello”. Foi a época mais feliz de minha vida como professor: eu era feliz e sabia! Esse tempo coincidiu com a pior (talvez) das crises vividas pela Escola Pública, com um suceder de greves e maus-tratos a cargo dos sucessivos governos estaduais. Após uma greve desgastante que durou 86 dias, resolvi retomar a Pós-Graduação na PUC: Comunicação e Semi­ótica (antes havia iniciado Teoria Literária). E tudo aconteceu direto: Mestrado (vide ANEXO 4) e Doutorado (vide ANEXO 5) em sete anos, os mais felizes de minha vida como estudante. Durante o Doutorado é que me iniciei no magistério superior (PUC-SP, Departamento de Arte). Hoje, só trabalho com o Ensino Supe­rior e continuo motivado para levar e receber informações, pesquisar (com vistas às orientações na Pós-Graduação e à Livre-Docência), discutir. Nunca constituiu problema, para mim, a conciliação magistério/produção artística.

Estando quase completamente fora das mídias, como artista, sou um ilustre (se tanto) desconhecido, a não ser por meia centena de aficionados da poesia in­tersemiótica inter- e multimídia. Isto não me desespera, mas também não alegra. Deixei o ensino elementar, como profissional, depois de dedicar-me a ele por mais de vinte e cinco anos (dedicação quase total). Ao exonerar-me do Estado, deixei chocada a funcionária da Diretoria de Ensino, quando lhe disse que os anos em que trabalhei com as crianças e adolescentes haviam sido os mais fe­lizes de minha vida profissional, e que eu os deixava com dor no coração.

Não durmo bem. Há mais de vinte anos. Lembro-me de ter dormido bem – como um anjo – apenas duas vezes nesse tempo todo e isto aconteceu em Bauru, ci­dade da qual até gosto, conheço desde a mais tenra infância, mas pela qual não morro de amores. Dorme-se bem em Bauru. Deixei de fumar há 20 anos (este se constituiu no meu mais notável ato de força de vontade!) Daí, cheguei a engordar mais de 20 kg e remocei na aparência. Nesses anos todos de vida trabalhando, plantei. Penso que somente através da Educação é que um país poderá vir a sair do mais-ou-menos para o bom e o ótimo. Não me casei, nem tive filhos (outros tiveram por mim e eu os respeito e lhes sou grato. Fui, por outro lado, acometido, inúmeras vezes, de paternidade psicológica). Antes, abracei causas: o Ensino, a Edição de Obras, o Exercício da Poesia. Deixo indícios meus pelo Planeta.

Poesia e Pintura/Teoria e Prática: as minhas maiores paixões enquanto ser-in­teligente-e-sensível. Desse nosso Mundo com tantos problemas, adversidades, sou um sobrevivente. Talvez seja esse o meu maior mérito. ΧΑΙΡΕ!

Omar Khouri . São Paulo: novembro de 2007.

        II. ANEXOS: TEXTOS/DOCUMENTOS

  1. Texto de Paulo Miranda em folder para a exposição realizada em Bauru na Fundação Educacional: JESUS & OUTROS, mais especificamente sobre a Via-Sacra. Maio . 1974
  2. POEMAS: sob a égide de Eros. Setembro de 2001
  3. CARTA-ABERTA-DESABAFO-ESCLARECIMENTO DE SALMA BAYOUD MONAQUEU. 2001
  4. DISSERTAÇÃO de Mestrado: resumo. 1992
  5. TESE de Doutorado: resumo. 1996

1

Omar Khouri não pintou a Via-Sacra. Pintou uma Via-Sacra sobre as Vias-Sacras já vistas e aprendidas. Viu, aprendeu, criticou, selecionou e recriou. E fez esse trabalho-monstro com a elegância de quem sabe por onde anda e de onde vem vindo. Também com a dose certa de angústia e desespero de quem não sabe o que vai acontecer – depois da curva…

Na obra de Omar Khouri, essa Via-Sacra encontra-se exatamente numa curva do caminho. Explode ali, deixando para trás talvez uma centena de quadros que pouco a pouco foram se tornando perigosos demais. Cada um exigindo mais do seguinte. Pedindo mais e mais do pintor. Dinamites. E Jesus ateou fogo em tudo. Sobrou um grande ponto de interrogação. Já que a Via-Sacra não é reticente, não exclama nem põe ponto final em coisa alguma. Pergunta – pondo em cheque o futuro na obra do pintor.

Ela é, por certo, um esgotamento de vários sintomas khourianos:

1-) o esgotamento do azul que prova ser, sozinho, suficiente até para contar uma estória. O pintor e a cor, nota-se, são velhos amigos. Amizade que foi, acredito, difícil de conquistar. Mas que na Via-Sacra deixa todos os sinais da vitória: não há monotonia na mono-tonia. Quem vê a Via-Sacra e dela participa, nunca há de desejar outras cores que não aquele azul que a povoa, comovendo, ironizando – sem ao menos ter medo de, tornado mão, apontar uma mancha vermelha que aparece, de repente, feito sangue.

O que fazer agora com esse azul triunfante?

2-) Esgotamento do espaço-tela sobre o qual, até agora, foi dado ao pintor traba-lhar. Não importa qual seja a dimensão da tela – em nenhuma delas as figuras estão “à vontade”. Parecem querer saltar para fora, invadir a parede, ignorando molduras. Não se critica aqui a composição. Longe disso. Ela, em si, é perfeita. Mas as figuras, e só elas, tornaram-se cada vez mais irrequietas, impacientes, insatisfeitas. E na Via-Sacra crescem cada vez mais e ameaçam invadir a sala.

O que fazer agora com essas figuras indomáveis?

3-) Esgotamento dos textos/títulos que foram cada vez mais se incorporando e se comprometendo – perigosamente – com o quadro em si.

Os dizeres nas telas não dão mais só o nome à obra, mas completam a obra, criticam, indicam chamam a atenção do observador, “conversam” com ele. Vão além da obra.

E o observador, por certo, fica um tanto ou quanto confuso com esse dueto de extratos: o visual e o sonoro.

Faz parte da Via-Sacra uma tela especialmente composta para uma personagem que, como todos nós, conhecendo muito bem a história de Jesus, dando por falta de um elemento importante, entra na seqüência e pergunta: “E a Verônica?” O pintor, pintando palavras, responde: “Veja Estação 6- Quadro ‘B’ “ Todos nós ficamos mais calmos, desaparece a tensão. Toda Via-Sacra que se preza tem obrigatoriamente uma Verônica. Esta também. Vamos até à estação indicada, quadro “B” e … para quem escapou ser aquela a Verônica, há uma segunda chance. Viramos a “página” e continuamos. De resto, o pintor usa textos em português, latim e inglês, com inteligência suficiente de quem já percebeu que “LOOK!” tem mais força do que “VEJA!” ou “OLHE!”.

E o que fazer agora com todo esse palavreado que quase nos reporta às legen­das das histórias-em-quadrinhos?

Pois, sem susto, a Via-Sacra de O. Khouri está sempre ameaçando ser nada mais nada menos do que uma história-em-quadrinhos. Pelos “closes” fotográfi­cos, pelo tipo de desenvolvimento da narração, pelo jogo de vai-e-vem de figuras e palavras. E me parece ter sido justamente essa a intenção do autor.

Podemos então criticar, livremente, uma certa infelicidade na escolha das di­versas dimensões de telas usadas pelo pintor. Não deve ter havido um planeja­mento global da obra, antes de ser iniciado o trabalho. E o resultado disso é uma desarmonia em termos de dimensões diversas, aleatoriamente escolhidas para contar tais ou tais episódios.

O conjunto só teria a ganhar, se um planejamento dessa natureza tivesse sido efetuado.

De qualquer maneira, cada quadro, retirado do todo, vale por si só. Tem existên­cia livre e independente. Basta-se. E essa Via-Sacra vale o total da soma de todos esses quadros que, em separado ou em conjunto, contando uma estória são, antes de tudo, belíssimos. “Tutto bellissimo” e “fonctiona”. Ezra Pound, com certeza, gostaria deles.

E agora voltamos à interrogação inicial sobre o que virá depois? Tantos pontos máximos alcançados, tantos aspectos tratados e retrabalhados até o esgota­mento. Do outro lado da curva ninguém sabe o que nos espera. Acredito que nem mesmo o pintor. No entanto, esse desconhecido não mete medo. Venha o que vier, podemos desde já anunciar com certeza que será um trabalho honesto, elegante e de alto nível. Um trabalho como essa Via-Sacra – feito por um artista raro: daqueles que sabem por onde andam e de onde vêm vindo.

Paulo José Ramos de Miranda . São Paulo/Pirajuí . Maio – 1974

2

POEMAS: sob a égide de Eros

Fosse eu espírita e acreditaria ter recebido, durante aqueles três meses e meio – fins de 1996, inícios de 1997 – alguns ilustres poetas já idos e tidos como repre-sentantes máximos da poesia fescenina ou um pouco menos que isto ou nada disto, tais como Mimnermo, Catulo, Marcial, Villon, Aretino, Góngora, Gregório de Mattos, Bocage – sem esquecer a onipresente Safo – assim como o magno bruxo Machado e o finíssimo portenho Jorge Luis, o Borges, prosadores-ficcio-nistas e o furacão-encoberto Pessoa, nas suas várias pessoas, mormente na de Álvaro de Campos; Bandeira e Oswald – brigando – se me apresentaram. Acreditasse, eu, em Platão e me menosprezasse enquanto ser-pensante e diria ter recebido os versos – sim, versos! – de uma entidade, sendo eu um mero meio através do qual ela, a divindade, viria se manifestar. Porém, sei que possuía o repertório, o qual maturou e foi-se enriquecendo durante mais de vinte anos, desde que os latinos Catulo e Marcial foram-me revelados por Luiz Antônio de Figueiredo – Bocage eu já conhecia razoavelmente e os demais – posso dizer – amigos meus conquistados em horas diversas… Foi tudo inspiração, ou seja, um momento privilegiado, de grande facilidade, em que tudo contribuiu para que a obra acontecesse. Foi o momento certo. Intuição informada; ninguém intui do nada: nada vem do nada. Deixei mais uma vez que Dr. Ângelo Monaqueu as­sumisse o meu trabalho. Em verdade, uma metalinguagem sobre poemas fictícios, uma ficção me-talingüística. Os comentários sobre os poemas acabam por formar uma ficção de retalhos – chegando a ter uma certa autonomia. O tema: coisas do erotismo e da maledicência, que dizem respeito menos ao autor e mais – cerca de 95% – a ex­periências a ele narradas por outrem, material que passou por uma elaboração, às vezes pelo crivo de uma poética em que se observam, ainda, procedimentos, como por exemplo, o do metro regular. E o autor se mostra um exímio verse-maker, um virtuose do verso e d’outros recursos que têm caracterizado poemas nos últimos 2700 anos – pelo menos, a partir dos gregos. Aos eus líricos dos poemas, junta-se o eu do comentador que se assume enquanto pessoa: Prof. Omar Khouri. Para mim, pornografia e erotismo são até a mesma coisa: sexo explícito. Não quero ver o erótico como diferente do pornográfico ou o erótico como um mero eufemismo ou como sendo o lado sutil das coisas do Reino de Eros. E nem quero que o pornográfico tenha a ver com o mercadejar do corpo, muito embora isso de prostituição esteja contido na etimologia da palavra PORNOGRAFIA. Gosto de putaria total. Costumo falar em Reino de Eros (de par com Ares, o deus da guerra. Guerra aos malquistos) em que mimos e cacetadas podem conviver naquele universo em que, quem comanda é o corpo, o tesão. Você já ouviu dizer de alguém que anunciasse um livro, filme, poema, peça de sexo implícito? Para mim é só uma questão de elaboração e não propriamente de utilização de um léxico, baixo ou não. Fenda. Aranha. Boceta. Xoxota. Vulva. Chav(b)asca. Peri­gosa. Onde cabe o quê? Eis a questão. O que é a peça enquanto fatura? É isto o que importa. Nunca se sabe do público que lerá o livro. Digo que é um mais-que-bom livro para muitos sexos e idades, mas principalmente para os que possuam a maturidade de depois dos 25 anos. Quem o saberá? O volume, juntamente com muitos outros, forma um corpus significativo dentro do universo das Letras Eróticas, sendo o conjunto, a obra do Dr. Ângelo Monaqueu. Um autor, ainda, quase desconhecido, além de desaparecido, mas que, ao que tudo indica, estará na berlinda, assim que seus trabalhos vierem a ter edições maiores e mais bem distribuídas, como a que ora apresenta a No­muque Edições. XAIPE!

São Paulo, 15 de setembro de 2001.

3

CARTA-ABERTA-DESABAFO-ESCLARECIMENTO DE SALMA BAYOUD MONAQUEU (MÃE DO MESTRE ÂNGELO MONAQUEU) EM QUE DEFENDE O FILHO-AUTOR DE INCOMPREENSÕES DE QUE FOI VÍTIMA POR OCA­SIÃO DA PUBLICAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO DE POEMAS: SOB A ÉGIDE DE EROS, OBRA POSSIBILITADA PELO ESFORÇO DO PROFESSOR OMAR KHOURI, UM SEU DISCÍPULO, E DA NOMUQUE EDIÇÕES. OUTROSSIM, LAMENTA O QUASE TOTAL SILÊNCIO DAS MÍDIAS – MORMENTE A IM­PRESSA (OS JORNAIS) – SOBRE O REFERIDO LIVRO

Dizes – ó Fidentino – tão mal os meus versos,

Que até parecem os teus…

MARCIAL

Dirijo-me aos possíveis interessados em POESIA para esclarecer alguns pontos da vida-obra de meu filho Ângelo (Monaqueu) – espécie de Brás Cubas paulista-interiorano-cidadão-do-mundo – e de nossa relação familiar envolvendo seu tra­balho de criação literária, do qual – diga-se – nós da família nem tínhamos conhe-cimento. Certa vez, pus fora toda uma gaveta de papéis do então moço, entre os quais muitos manuscritos, já que um rato havia feito no local, além de todo o estrago característico, o favor de morrer – não tive outro jeito, eu que não tolero papelada de qualquer espécie que não tenha utilidade prática ou documental, em minha casa (talvez que se tratasse de material poético, exercícios – quem o saberá?! – porém, eu não tive a curiosidade de bisbilhotar).

Essa minha atitude de agora vem a propósito de críticas canhestras que tem recebido a sua obra e pelo fato dele – Ângelo – estar desaparecido (isto mesmo: desaparecido e não finado, como alguns chegaram a insinuar). Tiro, assim, esse encargo de amigos, que até agora se têm ocupado da publicação da obra rema­nescente e, até então, secreta. Teria Ângelo alguma mágoa da família, família esta que não soube ver em tempo hábil o seu talento para as Letras? De minha parte, durmo tranqüila, pois amo acima de tudo o filho que tenho e que, quase sempre foi uma presença agradável, embora de afetividade comedida. Bem, este é um outro assunto.

Em primeiro lugar, devo dizer que, mesmo estando sempre e sempre ocupada com fazeres e afazeres domésticos em minha casa, inclusive agora, que já me encontro octogenária, não deixei – jamais! – de exercer e exercitar minha inteligência e minha sensibilidade, a qual se manifesta através do canto quando justamente me ocupo das referidas tarefas. Provavelmente isto deva ter interferi­do na formação primeira de meu filho, afetando a sua sensibilidade e, talvez, pre­parando o futuro poeta (se bem que – tudo indicava, ele viria a se dedicar à arte do desenho-pintura). Devo admitir que eu, assim como minhas irmãs, ficamos surpresas com os poemas de Ângelo: embora soubéssemos da grande cultura poética que ele possuía, jamais o imaginávamos capaz de versos e de versos tão bem feitos! Tampouco cogitávamos dele ser capaz de um humor tão acen­tuado! A questão temática em sua obra – provocadora de críticas que chegaram a atingir a família – só tem importância à medida que recebeu o tratamento que recebeu e não por se tratar de sexo em suas várias modalidades, abrangendo regiões sobre as quais as pessoas não gostam de ouvir ou falar (só pensar e fazer). Teria, em pleno início do Terceiro Milênio dC ferido suscetibilidades? Ora, ora, me poupem! Meu filho é um escritor, um ficcionista e, certamente, coletou materiais fornecidos por outrem, os quais ele elaborou, emprestando-lhes a dig­nidade de obras-de-arte. Ângelo é do tempo em que se passava pimenta na boca de criança que dizia palavrões. E ele os dizia. E eu, como mãe, aplicava a tal reprimenda. E não tenho remorso por isto. Era o que era de se fazer naquele tempo e eu fazia. Hoje, até eu admito, ou melhor, permito-me dizer uma que outra vulgaridade ou até mesmo chulice. Por outro lado, com o livro Poemas, Ân­gelo lava a sua alma e se livra de traumas, se é que estes chegaram a existir.

Não me lembro – e consultei alguns doutos – de um livro inteiro, na língua de Camões, que alcance a contundência, ao mesmo tempo que nível de poetici­dade, do conjunto dos poemas do tal livro sob a égide de Eros, como é subti­tulado esse em questão (do qual não se pode prescindir de nada, sequer das orelhas!) inserindo-se no universo fescenino. Se é que isto interessa a ele, a família, eu encabeçando, tem muito orgulho de contar com um poeta como ele é, com seus temas e formas.

Em conversa que tive com uma cunhada, professora universitária como Ângelo, e com um seu colega Túlio MensSana, brotaram comentários interessantes: 1. de como o livro se nos apresenta como uma espécie de manifesto contra a imagem, numa época de saturação da mesma, numa atitude tão parecida com a de iconoclastas (seria uma reação, em verdade, com relação à profusão de ima­gens que podemos observar em Templos Católicos e nos da Igreja Grega Orto­doxa, no seio das quais ele foi criado?) 2. Há como que uma dupla recuperação do Paganismo Antigo: a. enquanto evocação de autores e referências a peças célebres e b. enquanto exacerbação de temática de uma certa poesia grega e latina que celebra algumas das práticas do Reino de Afrodite e Eros.

E para terminar, devo revelar que ele iniciou seus estudos sistemáticos, desde o Jardim da Infância, no Grupo Escolar Olavo Bilac – teria isto algo a ver com seu destino de poeta, embora não-parnasiano? E que os primeiros contatos com a literatura foram, não com poesia propriamente (muito embora a ouvisse cantada por mim) mas com crônicas de Rachel de Queiroz. David Nasser também foi por mim lido para as crianças, Ângelo entre elas. Porém, desde muito cedo, ele passava a apreciar e impressionava-se com os desenhos e textos trabalhados graficamente de Millôr Fernandes: anos mais tarde eu conversava com meu filho sobre quão grande escritor/desenhista era o Milton, um dos maiores de quantos o Brasil já teve, em qualquer tempo, dando até orgulho de se ter nascido neste País. Porém, o que me pareceu de fundamental importância a ele, por volta de fins dos sessenta, começo dos setenta, foi a descoberta do trabalho feito pelos poetas concretistas de São Paulo o que, de qualquer maneira, teve influência em sua vida de crítico, tradutor e fazedor (= poeta).

Reitero a excelência artística da obra de meu filho e agradeço o trabalho daqueles que se empenharam em publicá-la e a atenção dos senhores que me lêem. Uma última palavra: feliz daquele que tiver o acerto de falar sobre esse livro! …

Atenciosamente

Salma Bayoud Monaqueu

São Paulo, 16de outubro de 2001. Pirajuhy, 30 de dezembro de 2001.

PS O livro, até a presente data, tem sido um fracasso na mídia, ou seja, não apa­receu, apenas se insinuou: A TV Cultura de São Paulo noticiou, no METRÓPO­LIS e no MUSIKAOS e o hebdomadário O ALFINETE, noticiou e publicou depoi­mento do Prof. Omar Khouri. Auguri!

PS 2 A Revista G MAGAZINE trouxe, sobre o livro, interessante nota (2002).

4

Dissertação de Mestrado:

Defesa pública em 25 de maio de 1992 (COS-PUCSP). Título: O fenômeno poético na tradição luso-brasileira : amostragem. Aprovação: média DEZ (obtenção do grau de Mestre em Comunicação e Semiótica: Literaturas). Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Santaella.

Resumo:

.Encarando a poesia como um “estado” especial da linguagem, considerou-se o fenômeno poético numa tradição idiomática específica: a do Português. Aí, foram detectadas peças onde o referido fenômeno comparece em seu mais alto grau. O método comparativo norteou a escala valorativa para a apreciação de peças e conseqüente seleção para a formação de um corpus poético mínimo em Língua Portuguesa. Nessa apreciação geral, as traduções criativas de poemas foram consideradas como parte integrante do acervo daquela tradição (abarcan­do Portugal e Brasil). Tendo em vista que a quase totalidade das antologias peca pelo excesso e tendo a consciência de que, para um público de não-iniciados, há que se observar uma estratégia especial, foi elaborada uma antologia com um mínimo dos mínimos: apenas vinte e duas peças, porém, um mínimo que traz um máximo de “poeticidade” e com apresentação cuidadosa, visando ao referido público. De Sá de Miranda a Paulo Miranda, procurou-se mostrar que a poesia sempre esteve à vontade na tradição de Língua Portuguesa: do verbal, ao mer­gulho no intersemiótico. Análises não muito exaustivas justificaram as escolhas, as quais poderão sofrer alterações: trocas, acréscimos etc, já que o que não falta é qualidade na tradição poética estudada.

5

Tese de Doutorado:

Defesa pública em 17 de setembro de 1996 (COS-PUCSP). Título: Poesia visual brasileira : uma poesia na era pós-verso. Aprovação: média DEZ (ob­tenção do grau de Doutor em Comunicação e Semiótica: Artes). Orienta­dora: Profa. Dra. Lúcia Santaella.

Resumo:

.POESIA VISUAL BRASILEIRA : UMA POESIA NA ERA PÓS-VERSO trata das manifestações da poesia brasileira a partir dos anos ‘70, daquela produção mais empenhada com a experimentação, tão cara às vanguardas e, particularmente, considerando a herança ainda modernista da Poesia Concreta, principal fonte, importante precursora, formadora de uma “tradição do rigor”. Dentro do que se convencionou chamar Pós-Modernidade, tem-se a ERA PÓS-VERSO, que, em­bora pós, admite a existência da prática do verso, só que diferentemente de outros tempos, em que as seqüências de linhas eurrítmico-eufônicas repousa­vam em rolos de papiro, pergaminhos ou páginas de livros. Essa POESIA VI­SUAL, que melhor seria chamar de INTERSEMIÓTICA MULTI/INTERMÍDIA, é encarada como o que de mais vivo se tem produzido, de duas décadas e meia para cá, no Brasil (que é o que aqui interessa), mas, também, fora – dos ‘70 aos ‘90. Utilizando códigos vários, entre os quais os da visualidade (onde se situa o verbal escrito, quase sempre presente), essa poesia traz também, como marca distintiva, o seu migrar de um meio para outro; este traço lhe é estrutural: o po­ema é pensado assim, já nasce com essa vocação, o exibir-se é parte integrante do seu existir. A Semiótica peirceana, em boa parte, implícita e/ou explicitamente embasa a abordagem, a qual não deixa de lado um enfoque histórico. As RE­VISTAS foram, nessa história, um importante meio de veiculação de poemas; daí a viagem empreendida até essas publicações (considerando apenas o su­porte papel, para esta Tese, especificamente). Dos poetas que se enquadramnesse universo, foram selecionados apenas oito, tidos como “exemplares”, vari­ando o número de peças escolhidas de cada um deles, as quais vêm a formar uma antologia mínima. Poemas são analisados com o intuito de explicitar a sua grandeza, aclarar o caminho de possíveis leitores, demonstrar o como eles cor­respondem àquilo que foi exposto na caracterização geral da POESIA DA ERA PÓS-VERSO. Os poetas da era pós-verso não chegaram a se articular em um grupo como em outros tempos, não chegaram a formar “movimento”, muito em­bora tivessem pontos em comum. O POEMA DA ERA PÓS-VERSO mostra aber-tura em termos de possibilidades do tempo atual, no que diz respeito a códigos e meios. A AMOSTRAGEM MÍNIMA que faz parte da TESE procura antecipar a publicação de uma tão esperada ANTOLOGIA DA POESIA BRASILEIRA DA ERA PÓS-VERSO.

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