32. Peculiaridades Cá e Lá.

Alguns dos valores colocados pelos concretistas de São Paulo eram também cultuados pelos experimentais de Portugal, com destaque para Mallarmé (1842-1898) e James Joyce (1882-1941). Ezra Pound (1885-1972), uma das figuras de maior destaque no mundo anglófono das letras, poeta fundamental, crítico, tradutor-recriador, promoter (a quem muita gente ótima, de Eliot a Joyce deve gratidão), espécie de semideus para os concretistas, frente ao deus Mallarmé, é referido lateralmente e como recusa pelo experimentalismo português. Mesmo no que diz respeito à questão do ideograma e sua importância para a poesia ocidental no século XX, não apenas pelo ensaio de Fenollosa (Os caracteres da escrita chinesa como um meio para a poesia), editado e divulgado por Ezra Pound, mas principalmente por ele-mesmo – Melo e Castro não reconhece a influência direta de Pound em seu experimentalismo, antes, clama por uma herança mediterrânica. E olha que já em 1956, na entrevista-depoimento que Décio Pignatari deu em Lisboa, com publicação na revista Graal 2, a palavra aparece e por influência de Pound, que é colocado (como vinha sendo, desde muito antes pelos componentes do Grupo Noigandres, formado em 1952 e do qual DP fazia parte) como um valor maior. Com ou sem repercussão, o depoimento de Décio Pignatari estava lá. Quando em 1962, o poeta Melo e Castro publica seu 1º livro de facto experimental, a obra vem com o título de Ideogramas, o que coloca em evidência, não apenas um tipo de escrita, mas também, o modo como ela se organiza. Os contactos diretos dos portugueses com o Oriente, contactos por mar, diga-se, datam de fins do século XV. No século XVI, os lusos estão no Japão e lá deixam marcas de sua presença, entre outros índices, a palavra pan = pão (de origem latina), como chamou-me a atenção, em Buenos Aires, em 15 de janeiro de 1984, Jorge Luis Borges. Então, esse contacto dos portugueses com os canji e, mais diretamente na China, onde estiveram e por séculos, colocam-nos em contacto com esse tipo de escrita que, além de guardar algo do hipo-ícone imagem, organiza-se espacialmente em seu suporte, sobressaindo a coordenação. Porém, não foram esses factos que desembocaram com força na poesia experimental portuguesa, com a assimilação de uma sintaxe ideogrâmica e de uma escrita tendente à imagética. Mais indireta que diretamente, o famoso escrito de Fenollosa, via Ezra Pound e concretistas de São Paulo, repercutiu nas origens da Poesia Experimental portuguesa, como, depois de Ezra Pound, com sua ação poética e crítica, ninguém ficou livre de tal influência, em maior ou menor grau. Talvez que o principal motivo para a recusa com relação ao poeta estadunidense esteja na sua opção política, a partir de um certo momento, e esta opção foi pelo fascismo na Itália, país de sua predileção. Os portugueses que, a partir dos anos 1930 até 1974, estiveram sufocados por uma ditadura de coloração fascista, talvez que não tenham conseguido deixar de lado esse aspecto político do bardo, autor dos Cantos, e preferiram não lhe dar o relevo que, como poeta e crítico, fazia jus. O pessoal da Poesia Experimental constituía um foco de resistência com relação ao regime que vigia em Portugal. Penso que a própria menção do nome Pound causasse uma certa indisposição, um mal-estar entre os/as poetas. Quando Décio passou por Lisboa, Ezra Pound ainda cumpria pena em manicômio judiciário, nos EUA. Livre, foi morar na Itália (e Haroldo de Campos lá o visitou, em 1959), onde veio a morrer, tendo sido enterrado no cemitério da Isola di San Michele, em Veneza. Direta ou indiretamente, todos passaram por Pound. Opção por um partido, quando feita por um artista, é sempre o que de pior ele pode fazer, pois, mais dia, menos dia, ele, artista, quebra a cara. Se todos têm na vida a sua cagada-mor, cósmica, digamos, a de Pound foi ter abraçado o fascismo. Os brasileiros do Grupo Noigandres, assim como o independente Mário Faustino, souberam isolar das grandezas os deslizes do grande Poeta. E quem ganhou com isto foi a Poesia.

Importante tentar detectar semelhanças e diferenças entre os experimentais do Brasil e de Portugal, já que, de qualquer modo, houve contacto entre eles, direta ou indiretamente, e há propósitos bem semelhantes no que diz respeito à postura frente à criação poética e à própria execução de trabalhos, e o evoluir dentro dessa (r)evolução trazida pelas novas tecnologias, novas linguagens. Se Lisboa é uma cidade europeia (e chegou a ser a cidade mais cosmopolita do Mundo), com distâncias fáceis de vencer no Continente, rumo a centros, como Paris, por exemplo, São Paulo acabou por assumir sua vocação cosmopolita, tendo o Estado de São Paulo recebido do século XIX ao XX, o maior número de imigrantes do Brasil e, particularmente a cidade de São Paulo, que chegou, nos anos 1940, a ser uma “cidade estrangeira”, ou seja, a maior parte de seus habitantes era nascida fora do Brasil, sendo de italianos a maioria dos tais estrangeiros. Por outro lado, São Paulo possuía uma aristocracia que endinheirou-se graças ao café, que se expandiu pela Província, depois Estado e essa aristocracia mantinha contatos com a Europa, desde o século XIX, chegando ao XX, com o Modernismo – então, de Eça de Queirós a Blaise Cendrars (os Silva Prado e outros) a aristocracia teve a oportunidade de exercitar o seu cosmopolitismo. Nos anos 1950, informações chegavam ao Brasil e viagens eram empreendidas, sendo que aquela aristocracia acabou, em boa parte, por ceder lugar aos emergentes que descendiam de imigrantes enriquecidos. Por outro lado, observavam-se (não na poesia) um número muito grande de artistas imigrantes – basta olhar para o Grupo Ruptura, à época de sua formação, em 1952, em que, de nascidos no Brasil (interior de São Paulo), só havia Geraldo de Barros e Luís Sacilotto, de sete componentes. Mesmo sendo ainda, em parte, São Paulo, uma cidade provinciana, o cosmopolitismo paulistano tendeu a crescer e entre os poetas (Grupo Noigandres, também formado em 1952) isto não apenas foi mais visível, como teorizado: basta olhar os valores que eles estavam a eleger: os precursores apontados, não apenas poetas, mas artistas plásticos e músicos. E passaram a medir tudo considerando o âmbito internacional. O Concretismo poético foi internacionalista. De Portugal, contatos com França, Inglaterra, Itália e Brasil, principalmente, permitiam o trânsito da informação.

Com relação ao Concretismo, houve os criadores do movimento, os que passaram pela Poesia Concreta, os que a praticaram esporadicamente, como um modo, uma “dicção”, os que fizeram e a renegaram e os que não a praticaram, mas a respeitaram e reconheceram o seu valor. O mesmo se observou em Portugal, com relação à POEX.

Como já foi colocado e com base em textos e depoimentos dos “históricos” de Portugal, neste país, não se formou propriamente um grupo, mas houve associação por afinidades poéticas para certos projetos. Portanto, houve menos sectarismo na Terra Lusitana. No Brasil, a coisa de “grupo” foi tão forte que, na fase ortodoxa, foram produzidos poemas que muito se parecem, embora sejam de autores diversos, pois trazem como características principais: economia de materiais, a começar pelo emprego de poucas palavras e, às vezes, uma, apenas, a imposição de uma forma geométrica e a utilização preferentemente do tipo futura negrito, com predomínio de caixa-baixa.

União de poetas com artistas plásticos e designers, tanto em São Paulo, como no Rio de Janeiro. Em Portugal: participação de artistas plásticos nos negócios de poesia e, muito embora sejam muitas as procedências dos poetas, Lisboa foi o grande centro de irradiação dessas ideias de inovação/experimentação. Dados os sectarismos e radicalização de propostas no Brasil, houve a ruptura, a partir de 1957, que se consumou em 1959, com o Neoconcretismo. Fruto principalmente das rivalidades São Paulo – Rio de Janeiro. Há quem considere a dissidência neoconcreta, no Brasil, mais uma questão de exercício de poder do que uma não-aceitação de ordem formal, apesar do extremo racionalismo paulista nos anos 1950, com destaque para Haroldo de Campos e o seu texto, de 2 páginas apenas “Da fenomenologia da composição à matemática da composição”, que provocou a ira de Ferreira Gullar. Menção merece, também, a extrema radicalidade de Waldemar Cordeiro à época, ele que liderava o grupo de artistas plásticos, que é de onde surgiu a ideia da Exposição, com a participação dos poetas, sendo que Augusto de Campos foi o encarregado de convidar o pessoal do Rio de Janeiro. Essa rivalidade entre centros irradiadores de cultura não houve em Portugal, em torno da Poesia Experimental: poucos são nascidos em Lisboa (Fernando Aguiar, por exemplo), sendo a maior parte provinda de outras cidades, da parte continental do País (Ana Hatherly, do Porto e Melo e Castro, da Covilhã), mas muitos da Ilha da Madeira (o que terá a água do Funchal e arredores, que propicia tantos e tão grandes poetas? Antónios: Aragão, Nelos, Barros) e até da África (Ex-)Portuguesa, como é o caso de Salette Tavares, nascida em Maputo, ex-Lourenço Marques, Moçambique.

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

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