31. Sem Presumir Do Futuro O Que Sairá Daqui…

Em seu prefácio (que pode ser considerado um “manifesto”, porém, sem autoritarismo) ao poema-livro Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, cuja 1ª publicação é de 1897, na revista Cosmopolis, Stéphane Mallarmé chega a dizer algo que se insere no campo do profético-aberto: “Aujourd’hui, ou sans présumer de l’avenir qui sortira d’ici, rien ou presque un art”. É que, do futuro, ninguém sabe e todo bom profeta (profeta é aquele que ‘diz à frente’) é antes ambíguo que categórico. Seria algo como que uma pitonisa (quase) sem o aparato místico-misterioso. De qualquer maneira Mallarmé sabia que dali sairia algo diferente. Mas, seria o quê? O poema que o texto apresenta é dessas peças fundantes, pois, anuncia e embasa a vertente mais criativa e radical da Poesia do século XX.

A herança mallarméana deu e continua a dar frutos e o complexo sígnico Un coup de dés… continua a desafiar leitores-observadores e a suscitar interpretações muitas. Interessante é que, no Brasil, Mallarmé encontrou leitores muito especiais: de Manuel Bandeira aos poetas do Concretismo, que foram até hoje seus melhores tradutores, cabendo a Haroldo de Campos a tarefa de traduzir Um lance de dados, tarefa da qual se desincumbiu magnificamente bem, com sabedoria e sensibilidade. E o poema continuou a instigar músicos: veja-se o projeto de Pierre Boulez (morto recentemente) para o poema, que continuou – salvo engano ou alguma revelação post mortem – projeto. Parece que músicos se sentem como que castrados frente à excepcionalidade da peça mais que centenária. Dificilmente acontece de grandes poemas darem boas composições musicais, ou seja, tornarem-se poemas cantáveis com boa música – o que geralmente se observa é que poemas medianos acabam por “inspirar” músicos que até acabam por fazer peças revolucionárias, a partir deles e com eles. (No Cinema se observa coisa semelhante: salvo raras exceções, veem-se obras literárias medianas propiciando obras-primas – de Hitchcock a Kubrick, enquanto que as obras-primas da Literatura permanecem Literatura e não se transformam no melhor Cinema.)

Há muito não se vive mais época de proselitismos, polêmicas não há, não se defendem idéias (pelo menos com algum entusiasmo), muito embora elas existam, e como! Novas idéias existem e todas ligadas à prática das artes e suas relações com os novos meios/linguagens. Sim, novas tecnologias trazem consigo todo um potencial de linguagem, o qual vem a ser percebido por artistas que, lançando mão daquelas, fazem Arte. Pois é isto mesmo: algo suge como uma mera técnica, tornando-se arte à medida que é percebido como linguagem. Foi o que aconteceu com a Fotografia, com o Cinema, com o Vídeo, que continua na ordem-do-dia, agora mesclado com tecnologias mais avançadas, e tendo, já, produzido obras-primas e abrindo caminho para as obras-primas a surgirem nos outros campos mais recentes.

O interessante é notar que, no que diz respeito à defesa dessas novas tecnologias – salvo um ou outro caso de escândalo, envolvendo suposta questão de ordem ética – temos verdadeiros manifestos, geralmente longos e que quase não encontram resistência por parte de quem quer que seja. É que essas tecnologias adentram o dia-a-dia de todos, independentemente de se ser ou não arrojado e mostram alguma utilidade ou oferecem algo de lúdico, atraindo crianças e adolescentes, que já nasceram em meio à nova realidade desses meios, num processo irreversível. Nessas feiras de Alta-Tecnologia ou nas exposições de Artecnologia, é difícil para um adulto alcançar um daqueles “brinquedos”, já que crianças e adolescentes chegaram antes e já tomaram conta de tudo. O que interessa aos novinhos é a interatividade que, diga-se, é sempre limitada, pois que é dado operar a partir das possibilidades colocadas pelo mentor da obra, que continua sendo o autor (individul ou grupo que se associa). Porém, poucos têm a consciência de que há linguagens aí, à espera de alguém que as trabalhe: o artista percebe e faz. De quando em quando, um débil grito contra “o processo de desumanização que se observa”. Mas como seria não-humana uma produção dos próprios humanos? – perguntaria Décio Pignatari. Essa tecnologia não nos veio de Saturno, mas foi gerada, mesmo, no planeta Terra. Abraçar as novas tecnologias é caminho obrigatório para aqueles que querem fazer Arte hoje e Poesia, em especial, mesmo que operem no convivio de tecnologias várias. Porém, é fundamentel que não se percam as antigas tecnologias, como vimos dizendo. Saberá operar muito melhor uma câmera aquele que conhece pintura e demais artes da visualidade. Operará com mais sabedoria um processador de textos alguém que porventura visitar uma tipografia e ver como é que trabalha um tipógrafo, ainda hoje – e olha que os há em toda parte. Ao mesmo tempo em que se constata a globalização, nota-se a exacerbação de particularismos – ninguém quer que desapareçam as características de sua etnia, comunidade etc. A tecnologia mais avançada pode tolerar antigas tecnologias e até conviver com elas e é o que tem acontecido – é importante que não se percam tais tecnologias, muito embora nunca permaneçam as mesmas. Observa-se, de facto, uma mistura de paradigmas, como bem colocou em importante ensaio Lúcia Santaella (Os três paradigmas da imagem).

Nisso tudo, a ambição artística continua como componente obrigatória dos procedimentos daqueles que – de facto – estão comprometidos com a criação e têm consciência-de-linguagem. Ou seja, poderia ser considerado um artista, um fazedor, alguém que não estaria interessado em, de alguma forma, inovar? Nem que não seja revolucionar, propriamente. Essa questão, configurada no “Experimental”, foi assaz discutida pelos poetas experimentais portugueses, nos anos 1960 e mantém a sua atualidade. O sonho de todo poeta é encarnar o papel de Inventor, tal como colocou Ezra Pound em sua famosa classificação dos escritores (poetas, artistas em geral), ou seja, construir uma obra em que se detectem os primeiros sinais de uma nova arte. E geralmente o que temos são co-inventores: aqueles cujas obras em conjunto são o exemplo de um novo procedimento. No mínimo, quer-se ser um mestre que, às vezes, até chega a fazer algo melhor elaborado que os inventores, que necessariamente o precederam. Com tudo isso o que se quer dizer é que a inquietação e a pesquisa, a busca, estão sempre a acompanhar artistas-poetas e os que abordamos deixam explícita essa inquietação/investigação com relação à(s) linguagem(s). Daí, a experimentação, a busca e a crença em projeto que, no mínimo, vise ao aperfeiçoamento dos humanos seres, no que diz respeito à sensibilidade. Décio Pignatari, Melo e Castro e Salette Tavares, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, Ana Hatherly e José-Alberto Marques, Ronaldo Azeredo, António Aragão, Villari Herrmann, Emerenciano Rodrigues, Fernando Aguiar, Lenora de Barros, Abílio-José Santos, José Lino Grünewald, Gil Jorge, João Bandeira, António Nelos, Aldo Fortes, Tadeu Jungle, António Barros, Paulo Miranda, Armando Macatrão, Sonia Fontanezi, Silvestre Pestana, Walter Silveira, Alberto Pimenta, Júlio Mendonça, António Dantas, Arnaldo Antunes, André Vallias, Rui Torres…

Já com um certo distanciamento de parte da produção dessa poesia aqui abordada, pois que o seu processar-se continua em curso, daria para tirar algumas conclusões, como a de que é a que mais se tem empenhado em buscar formas novas, a mais curiosa e investigativa. A de que essa poesia se tem, como que naturalmente, envolvido com as mais novas tecnologias, vendo-as não como meras técnicas a serviço de, mas como portadoras de linguagens, propiciadoras de uma nova arte, a arte de uma nova era. A de que essa poesia já produziu obras-primas, que vão da poesia-papel até o vídeo e as incursões na Rede, adentrando o universo do disponível. Pensa-se, aqui, que o desafio maior da atualidade seja o de conceber peças que possam despertar a curiosidade de terráqueos, simplesmente terráqueos, o que vale como um manifesto e reitera o papel da visualidade como elemento constitutivo estrutural da obra poética.

No momento atual (de uns 30 anos para cá) em que muito se restaurou – verso, pintura, prosa ficcional com desenvolvimento lógico etc – poetas, mesmo dominando o afazer do versemaker, insistem numa poesia experimental, como novos leitores do Mundo, como produtores de linguagem a cumprir um papel: o de serem portadores de um novo modo, uma nova Poesia. Que um julgamento mais preciso disso tudo é tarefa da qual só o futuro poderá se (des)incumbir. Coragem intelectual, sensibilidade aberta para abraçar a causa. Poesia. Poesia para romper barreiras e encontrar fruidores no mundo todo. Porém, nada se descarta: do livro impresso a um muro, de um poema reproduzido em xerox autonomamente, a um outdoor-papel ou painel luminoso computadorizado, e daí para a Rede. Que essa poesia fala alto e se apresenta com uma linguagem mais universal.

Omar Khouri . Lisboa . 2016 . Bolsista PDE pelo CNPq junto à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa . Supervisor: Prof. Dr. João Paulo Queiroz

 

 

 

 

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