Meditações sobre a possibilidade do suicídio
como uma das Belas-Artes
Para Omar Khouri

Felipe Martins-Páros, 1998


São Paulo, 24 de junho de 1998


Escrevo esta carta àqueles que julgo, me apreciam... Sim, eu julgo, tenho que tomar minhas próprias conclusões sobre as pessoas, principalmente no que diz respeito ao que elas acham de mim ou do que elas não acham. Espero ter julga-do corretamente... Não quero ter dúvidas sobre isso logo agora!

Esta carta tem uma função clara e bastante restrita: é uma aviso. E o aviso é: Hoje me matarei. É aquela história: quando vocês souberem deste papel, eu já vou estar duro e frio em algum lugar, se bem que ainda não decidi o bendito do lugar! Não decidi onde vou morrer. Só decidi que vou morrer. Já estava na hora mesmo, acho que já adiei muito...

Vou poupar o trabalho dos legistas ( ou quem sabe tirar-lhes a diversão? ) e es-tragar o prazer mórbido e sadomasoquista de quem gosta de histórias com mortes de aspectos estranhos! Como bom chato que sempre fui, vou pré-desvendar o meu mistério: vou tomar penicilina. Chocados? Para os leigos, eu explico: é um tipo de antibiótico... Desde pequeno tenho uma alergia fortíssima a ela e não sei bem o que pode acontecer se tomar uma grande dose. O menos que pode acontecer é que eu morra. Justamente o que eu quero que me aconteça. De preferência de um modo bem terrível, me inchando ou me corroendo por dentro, me provocando convulsões e espasmos medonhos, me serpenteando teso contra o chão e as paredes enquanto minha língua se enrola e eu começo a me afogar com a baba que vou produzir! Parece assustador, não parece? E é! Mas eu não me mataria por menos. Pensei bastante sobre o assunto e cheguei a conclusão de que morrer é uma arte, sabe? Assim como sofrer também é uma arte das mais complexas e refinadas. Leva-se muito tempo para saber sofrer, e morrer então é bem mais difícil!

Morrer, amargura da vida, todos morrem... Não tem aquele poeta que disse que a morte dele nasceu quando ele nasceu? Pois é, é justamente aí que mora o barato da questão! Morrer, todos morrem, mortes ridículas, prosaicas, medíocres... Eu decidi a muito tempo atrás que fugiria desta armadilha, que minha morte seria um quadro de horror indescritível, que minha “passagem” ( se é que não é meio idiota para alguém como eu usar este termo! ) seria realmente sofrida! Nada de gemidos e choramingos de velho, que se agarra à precariedade do fiapo de ânimo de um corpo decrépito e pronto para o ataúde! Queria, e quero ( e vou ter! ) sim, convulsões, espasmos, olhos saltados, rosto inchado, líquidos expelidos e tudo o mais que tiver direito! Se quisesse uma suposta dignidade na morte daria um tiro na cabeça e pronto! Rápido e indolor, como dizem os especialistas... Morte sem dor? Onde está o drama, onde está a arte? Não sou assim tão sintético para acabar com tudo me usando de um ascético projétil metálico que simplesmente me atravesse as têmporas e dê o espetáculo por terminado. Na verdade sou bem barroco, gosto dos excessos, gosto dos escândalos! Quero que minha mãe grite, se descabele, entre em estado de choque e depois desmaie quando me encontrar destruído no quarto, quero que meu pai sinta remorsos até do que nunca me fez, que se sinta atormentado como um herói de ópera! Quero que aqueles a quem desejei e que me rejeitaram tenham a sensação todas as noites de que meu espírito lhes persegue, quero que tenham pesadelos com a imagem enojante da minha morte pelo resto de suas vidas!

Resumindo: quero que jamais me esqueçam!


São Paulo, 28 de junho de 1998

Tive dificuldades de conseguir a penicilina. Talvez fosse mais fácil abrir mão de todo o glamour pretendido e optar por algo mais objetivo e funcional. Não vou ter o mesmo efeito poético, é fato, mas vou ter resultados! Poderia me jogar pela janela do quarto, pelo menos seria mais barato! A janela é alta, dificilmente eu sobreviveria... É mais simples que ter que comprar o bendito do antibiótico, ou algum veneno no melhor estilo “Romeu”. E depois, veneno dói! Pensei seriamente sobre todo o Teatro da Dor que havia imaginado a alguns dias atrás, sobre os espasmos e as convulsões, e percebi que não havia levado em conta um elemento muito importante: minha covardia! Eu não quero dor, quero morrer! Hoje quando acordei me pareceu terrível a idéia de ter de sofrer para morrer, todo o entusiasmo pelo drama e pela arte e o requinte do bem-morrer me pareceram meio um delírio de alguém sob efeito de algum ácido ou narcótico, coisa que eu nunca usei e, mesmo às vésperas do suicídio, não chego a me arrepender de não ter experimentado... Já não consigo mais ver a beleza da possibilidade do dramático, mas sinto um pouco de repulsa pela possibilidade do melodramático! O fato é que, definitivamente, agora sei que quero uma morte objetiva, bastante sintética! Nada de arabescos ou volutas para morrer...

Falando em alucinógenos e agremiados, li uma vez em um livro de História da Arte sobre o hábito que os freqüentadores dos antigos cabarés franceses tinham de beber absinto. Tinha uma ilustração, um desenho ou uma tela do Toulouse-Lautrec ( acho que era Toulouse-Lautrec, ou seria Renoir?... ). O nome era “Os Bebedores de Absinto”, “Um Copo de Absinto”... Ah! Sei lá! Só sei que estavam bebendo o tal absinto. Essa bebida é alucinógena, as viagens que ela gera devem ser interessantes. Um amigo meu que esteve em Portugal bebeu por lá, e me disse que o treco parece perfume, é como se você bebesse perfume! Álcool cheiroso! A viagem ele nem conseguiu me descrever. Segundo ele, o barato é tão forte que as pessoas não conseguem nem se lembrar depois!...

Mas porque eu me lembrei disso? Ah, é mesmo! Narcóticos e alucinógenos! Absinto vicia rápido. E mata. Talvez eu enfim devesse experimentar alguma droga antes de morrer, talvez fosse legal morrer de overdose... Talvez fosse legal morrer com a cabeça cheia de figurinhas do Bosch rindo para mim e correndo por todos os lados de minha cabeça. Acho que seria uma morte sem dor, isso é o mais importante!

Covarde! Não sei porque tanto medo assim da dor agora! Morte por morte, que diferença isso faria a uma altura dessas? Uma diferença estética? Uma diferença moral talvez, que seria então mais importante que a estética, já que, se morrer sofrendo lembra novelas mexicanas, também revela a miséria da fragilidade humana, como somos insignificantes e sem dignidade! Somos ( quando somos dignos ) dignos de pena, e se tem alguma coisa que me enoja é ser digno de pena, ou ter de sentir pena de alguém! Isso é insuportável!...

A janela continua aqui, aberta. Em vez que ficar fazendo conjecturas sobre o ato, bastaria cometê-lo.

Espero que achem meu corpo pela manhã, e espero que me cremem...


São Paulo, 01 de julho de 1998

Queria não ter mais de pensar em certas coisas nunca. Aliás, queria que certas coisas não existissem. Isso simplificaria bastante as coisas outras que sobrariam! São coisas demais nas quais pensar. Coisas, coisas, coisas. Prefiro as anti-coisas. O anti-eu de preferência, o anti-ego, o anti-tudo-que-existe! Tenho medo de mim, tenho medo de tudo. Tenho medo das coisas, daquelas coisas ( certas coisas! ). Pouco é calmaria. Relaxar quando? Acredito que nunca. Tensão sempre. Estou rígido, músculos de pedra, só a mente se mexe convulsa, confusa, sem razões que a norteie a não ser a angústia, o arrependimento. O que eu preciso é de tortura, flagelo! Sem dúvida é o que eu mereço... Se não isso, o que? Flores? Uma boa esposa, filhos, casa com jardim, carro na garagem, emprego em escritório? Não, o que eu mereço são algumas várias chibatadas. Chicote de rabo-de-tatu por favor! Não me venham com fitas de seda! Eu preciso sofrer! Minha alma é vício. O fim se aproxima. Errei novamente. Vou ter de ser punido. Era o mínimo que se deveria ter: punição exmplar. Algo demorado. Algo purificador. Algo santo...

Mas eu não sou santo.

Só sou um suicida que não quer morrer.


Felipe Martins-Páros, 1998

 


Retirado de Sígnica: Um balaio da era pós verso (apesar do verso)
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