Felipe Martins-Páros, 1998
Esta carta tem uma função clara e bastante restrita: é uma aviso. E o aviso é: Hoje me matarei. É aquela história: quando vocês souberem deste papel, eu já vou estar duro e frio em algum lugar, se bem que ainda não decidi o bendito do lugar! Não decidi onde vou morrer. Só decidi que vou morrer. Já estava na hora mesmo, acho que já adiei muito... Vou poupar o trabalho dos legistas ( ou quem sabe tirar-lhes a diversão?
) e es-tragar o prazer mórbido e sadomasoquista de quem gosta de
histórias com mortes de aspectos estranhos! Como bom chato que
sempre fui, vou pré-desvendar o meu mistério: vou tomar
penicilina. Chocados? Para os leigos, eu explico: é um tipo de
antibiótico... Desde pequeno tenho uma alergia fortíssima
a ela e não sei bem o que pode acontecer se tomar uma grande dose.
O menos que pode acontecer é que eu morra. Justamente o que eu
quero que me aconteça. De preferência de um modo bem terrível,
me inchando ou me corroendo por dentro, me provocando convulsões
e espasmos medonhos, me serpenteando teso contra o chão e as paredes
enquanto minha língua se enrola e eu começo a me afogar
com a baba que vou produzir! Parece assustador, não parece? E é!
Mas eu não me mataria por menos. Pensei bastante sobre o assunto
e cheguei a conclusão de que morrer é uma arte, sabe? Assim
como sofrer também é uma arte das mais complexas e refinadas.
Leva-se muito tempo para saber sofrer, e morrer então é
bem mais difícil!
Tive dificuldades de conseguir a penicilina. Talvez fosse mais fácil
abrir mão de todo o glamour pretendido e optar por algo mais objetivo
e funcional. Não vou ter o mesmo efeito poético, é
fato, mas vou ter resultados! Poderia me jogar pela janela do quarto,
pelo menos seria mais barato! A janela é alta, dificilmente eu
sobreviveria... É mais simples que ter que comprar o bendito do
antibiótico, ou algum veneno no melhor estilo “Romeu”.
E depois, veneno dói! Pensei seriamente sobre todo o Teatro da
Dor que havia imaginado a alguns dias atrás, sobre os espasmos
e as convulsões, e percebi que não havia levado em conta
um elemento muito importante: minha covardia! Eu não quero dor,
quero morrer! Hoje quando acordei me pareceu terrível a idéia
de ter de sofrer para morrer, todo o entusiasmo pelo drama e pela arte
e o requinte do bem-morrer me pareceram meio um delírio de alguém
sob efeito de algum ácido ou narcótico, coisa que eu nunca
usei e, mesmo às vésperas do suicídio, não
chego a me arrepender de não ter experimentado... Já não
consigo mais ver a beleza da possibilidade do dramático, mas sinto
um pouco de repulsa pela possibilidade do melodramático! O fato
é que, definitivamente, agora sei que quero uma morte objetiva,
bastante sintética! Nada de arabescos ou volutas para morrer...
Queria não ter mais de pensar em certas coisas nunca. Aliás,
queria que certas coisas não existissem. Isso simplificaria bastante
as coisas outras que sobrariam! São coisas demais nas quais pensar.
Coisas, coisas, coisas. Prefiro as anti-coisas. O anti-eu de preferência,
o anti-ego, o anti-tudo-que-existe! Tenho medo de mim, tenho medo de tudo.
Tenho medo das coisas, daquelas coisas ( certas coisas! ). Pouco é
calmaria. Relaxar quando? Acredito que nunca. Tensão sempre. Estou
rígido, músculos de pedra, só a mente se mexe convulsa,
confusa, sem razões que a norteie a não ser a angústia,
o arrependimento. O que eu preciso é de tortura, flagelo! Sem dúvida
é o que eu mereço... Se não isso, o que? Flores?
Uma boa esposa, filhos, casa com jardim, carro na garagem, emprego em
escritório? Não, o que eu mereço são algumas
várias chibatadas. Chicote de rabo-de-tatu por favor! Não
me venham com fitas de seda! Eu preciso sofrer! Minha alma é vício.
O fim se aproxima. Errei novamente. Vou ter de ser punido. Era o mínimo
que se deveria ter: punição exmplar. Algo demorado. Algo
purificador. Algo santo...
Retirado de Sígnica:
Um balaio da era pós verso (apesar do verso) |