Sr. Fulano
Régis B. Frias


               O dia não era menos que propício para o que aconteceu. O Sol observava inerte as pessoas exatamente como fizera um dia antes e exatamente como faria no dia seguinte. Na rua, pessoas e coisas agiam rigorosamente como sempre agiram. E aquele sujeito, de meia idade, carregando sua pasta e seguindo seu caminho, não compunha exceção à regra: fazia tudo como costumava fazer todos os dias de sua vida. Quando cruzou com um jovem casal que vinha em direção oposta, dirigiu-lhe a palavra:
              - Com licença, Srs., mas não pude deixar de reparar na sua discrição.
              - Nossa discrição? – surpreendeu-se o rapaz.
              - Sim. – retomou o homem – Os Srs. notaram que nossos caminhos se cruzaram e os Srs. nem repararam que eu passava? E isso não é uma repreensão de um velho descontente com a vida e mal-humorado. Na verdade, foi justamente a sua apatia com a minha pessoa que me agradou nos Srs. Os Srs. seguiam seus caminhos, muito provavelmente para fazer algo de praxe, como estudar ou encontrar alguma pessoa de que gostem; e suas expressões me indicavam exatamente isso. Isso é muito interessante. Nesse momento, os Srs. passaram de coadjuvantes da minha vida para protagonistas de suas próprias vidas. O que me faz pensar que os Srs. vão chegar em casa, cumprimentar seus familiares e se entregarem aos hábitos cotidianos sem se darem conta da minha existência. Aliás, sem se darem conta da existência do seu vizinho do andar de cima! Isso não é interessante? Seu vizinho permanecerá tão incógnito quanto aquelas figuras estereotipadas que nos aparecem todos os dias na TV. E o que me deixa mais espantado é o fato de sermos cidadãos médios, que serão enterrados em cemitérios burgueses e apenas lembrados pelos parentes e amigos. Imagino também que os Srs. sejam pessoas de bem, pois estão me ouvindo divagar sobre a vida sem desconfiarem da minha integridade ou sentirem-se inseguros diante da minha pessoa – talvez por ter eu uma aparência à qual os Srs. habitualmente associam a pessoas mais ou menos confiáveis e de um nível sócio-econômico semelhante ao dos Srs. Aliás, isso me impele a fazer uma metalinguagem: nós estamos dialogando – ou devo dizer ‘monologando’? – há alguns minutos sobre um assunto completamente fora do comum e talvez até “não ortodoxo”. Sendo que, se nossa conversa tivesse sido despertada por uma batida de carro decorrente da distração ou da falta de habilidade ao volante de um de nós, provavelmente agora estaríamos brigando. Ou, se estivéssemos, eu e o Sr. numa fila de banco, provavelmente estaríamos tendo uma conversa cordial e sufocantemente formal, sobre como está o dia ou como o dólar subiu hoje, apenas para afastar aquela desagradável ‘solidão acompanhada’ que são os lugares públicos. Ou seja, com apenas duas pessoas que eu sequer conheço ou sei o nome, temos três situações diferentes: uma briga, uma conversa informal porém artificial e uma conversa formal porém descontraída. Tudo isso com dois ou três indivíduos comuns, de renda média e de conhecimento geral razoável. Se tivéssemos nos conhecido há mais tempo, poderíamos ser amigos ou – quem sabe? – inimigos. Mas, aqui estou eu despejando um sem-número de absurdos a que os Srs. dão toda a atenção sem me fazer parecer incômodo ou indesejado, talvez por educação, talvez por não terem nada melhor para fazer, ou talvez para terem alguma coisa para contar para seus netos quando forem velhos. E, nesse tempo todo que eu estou falando, os Srs. sequer se interessaram em saber o meu nome ou eu o dos Srs.
              Quando a moça fez menção de preencher a lacuna, o distinto senhor interrompeu-a:
              - Mas é isso que me deixa mais empolgado com a nossa relação. Eu não sei o nome do Sr. ou da Srta. E faço questão de continuar não sabendo! Isso não é realmente interessante? Eu também insisto em não revelar meu nome ou minha ocupação. Isso de modo algum afetará nossos destinos. Eu posso ser um bancário, um advogado, um executivo, um vereador, um contador. E meu nome poder ser Alberto, Honório, Sr. Araújo, Botelho, Hepaminondas, Proslambanômenos da Silva. Nossos destinos se cruzaram sem terem se atraído naturalmente, exatamente como acontece com outros destinos de tantos Marcelos, Fernandos, Julianas, Rodrigos, Clarices, Amandas Drs. Nacimentos, Donas Marias etc. Essas pessoas se entreolham e cruzam seus caminhos todos os dias e mal reparam na existência das outras. Isso é ou não é interessante? E eu não quero com isso dizer que daqui por diante os Srs. deveriam reparar nas outras pessoas, nas pessoas que estão à sua volta, ou no jardim daquela casa com um telhado diferente. Muito pelo contrário! E o fato de eu estar falando isso para os Srs. não faz de mim um maluco. Na verdade, eu apenas gostaria de ser classificado como observador.
              Como reparou que o casal o ouvia com alguma atenção, continuou ainda o Sr. Indivíduo:
              - A maioria das pessoa gasta seus neurônios tentando ser “normal”. (A minoria, que não faz isso, gasta seus neurônios tentando não ser “normal”. Ou seja, “intelectual”, “politizado”, “artista”, “filósofo” e “anormalidades” afins.) Na verdade, a palavra “normal” me parece ser uma tradução desajuizada da palavra “comum”. Por exemplo: aquela senhora que está atravessando a rua agora, está indo à igreja, não porque ela sente uma força interior que a impele a isso, mas porque ela fez assim a vida inteira. E por que ela fez assim a vida inteira? Porque seus pais fizeram assim a vida inteira. Exatamente como o escriturário que vai todos os dias ao escritório e trabalha, trabalha, trabalha para ganhar sempre a mesma quantia miserável. Mas é com esse dinheiro que ele vai sustentar sua família, seus filhos, que crescerão e serão escriturários, burocratas, funcionários de alguma coisa etc. Sim! As pessoas se esforçam ao máximo para que tudo continue como está e como sempre foi. Mas por que as pessoas fazem tudo isso? Para serem felizes, supõe-se? Eu, particularmente, acho que fazem por pura inércia, apenas por não terem pensado sobre isso. Lembrei-me agora de um conhecido meu, que trabalhava o dia inteiro, chegava em casa à noite, os filhos já dormindo e cansado demais para a esposa. Deus estava compensando seu esforço no trabalho: ele já estava com um patrimônio considerável, carro, casa própria, TV. Mas, infelizmente, perdeu a família num terrível e imprevisto acidente. Quis dar o máximo de conforto para sua família e passar com ela dias ou momentos agradáveis. Mas ao invés disso não passou mais que alguns instantes felizes com seus entes queridos. Eu não sei quem está com a razão, se são os católicos, os protestantes, os muçulmanos, os budistas – e isso não é ceticismo revoltado, apenas uma dúvida digna de qualquer ser humano – mas, nessas condições, eu acho que a única coisa que importa é nossa vida agora. Depois da morte é outro problema. Por isso eu acho que só deve ter sentido uma vida feliz por completo. E eu não estou tentando combater a inércia das outras pessoas, mas a minha. Mas então eu me pergunto: se todos são assim, qual o problema de eu o ser também? Qual o problema de trabalhar todos os dias por um salário médio e ter conversas agradáveis no elevador, e ir ao supermercado, e dar um presente para a esposa, e passear com o cachorro? Mas por que as pessoas, que são absolutamente iguais entre si, em qualquer religião, têm comportamentos tão diferentes e contraditórios? Se o Sr. passa no sinal vermelho eu reclamo e digo que esse mundo não tem mais jeito. No entanto, dali a dois minutos, passo eu no sinal vermelho porque estou com pressa de chegar em casa e fazer absolutamente nada! E por que fazemos isso? Não é por ser da “natureza humana” brigar e fazer as pazes o tempo todo, mas porque nós nos habituamos a fazer sempre as mesmas coisas que as outras pessoas. E isso porque não queremos ser diferentes, porque queremos ser felizes como nossos vizinhos parecem ser, por mais que eles passem no sinal vermelho e briguem com seus amigos. E o jeito de nossos vizinhos serem felizes é serem pessoas comuns. Afinal, não se pode ser feliz o tempo todo. Mas, com isso em mente, acabamos por ter pouquíssimos momentos realmente felizes. Por falar nisso, permita-me descrever o dia mais feliz da minha vida: o dia, no mês passado, em que eu comprei um carro novo. Isso é ou não é interessante?! Como todos os cidadãos na minha idade e condições, eu fiquei feliz com um carro novo, que também poderia ser um apartamento novo, uma TV nova, um aparelho de som de última geração, um computador, ou qualquer uma das maravilhas do mundo capitalista. Eu faço questão de enfatizar que eu sou um sujeito como outro qualquer nas minhas condições! Isso é interessante!! Eu sou um sujeito comum! Vejam! Eu sou um sujeito normal!!
              Nessa última tomada de fôlego do cavalheiro, o casal resolveu que já estava na hora de ir embora. O bondoso senhor compreendeu que havia falado demais e despediu-se cordialmente do casal, que seguiu seu caminho, impassível. Retomando seu ar coloquial e cotidiano o cidadão lembrou-se que devia ir também.
              No caminho, cruzou com um cavalheiro que, para economizar descrição, convido o leitor a tomá-lo por semelhante do nosso protagonista. Esse cavalheiro seguia passivamente seu caminho quando resolveu dirigir a palavra ao nosso já conhecido homem comum com quem ia cruzar:
              - Com licença, cavalheiro, o Sr. é católico?
              - Sou.

 

Retirado de Sígnica: Um balaio da era pós verso (apesar do verso)
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