(ENTREVISTA)
— O que é a inteligência?
— Formular perguntas sobre
ela própria, talvez seja isso.
— Você está indo muito bem no teste, meu jovem. Agora responda o
que é poesia?
— Um labirinto de espelhos. O mesmo maldito labirinto da pergunta
anterior.
— Interessante... mas me diga: supondo que você esteja preso
nesse labirinto...
— Já
sei o que quer dizer. Eu não gosto de me sentir preso. Por isso tentei fugir
dando socos nos espelhos desse labirinto e
acabei cortando minhas mãos. Assim sem querer fiz poesia. Minha poesia.
— Jogo de palavras peculiar, jovem. Poesia e inteligência são o
mesmo labirinto?
— Digamos que são matizes da mesma cor.
— Cor de sangue?
— Hum... sim. Creio que sim. Cor de sangue.
— Há poesia e inteligência permeando sua entrevista, jovem Jeová.
Porém noto uma certa morbidez em algumas de suas metáforas. Disse que deu socos
nos espelhos do labirinto chamado Poesia. A análise que eu faço é que você
tentou o suicídio.
— E o que é que você, uma Inteligência Artificial, entende de
suicídio? Foda-se.
— Você tem um nome apropriado para o emprego que deseja, Jeová.
Apenas uma
última indagação.
Se você fosse Deus, o que você faria?
( Jeová fica em silêncio).
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Seu olhar
vago mirava há tempos as
vitrines das lojas shopping center assim como se ele tivesse perdido
alguma coisa nelas; talvez sua identidade. Irritou-se consigo mesmo. Por que ele
era assim o tempo todo? O que pretendia demonstrar? E quem se importava com isso?
Nem ele mesmo se importava mais consigo. E quem sabe por isso mesmo tinha embarcado
naquela onda. Tirou o folheto amassado do bolso:
ATENÇÃO
VOCÊ
QUE É JOVEM E TEM HABILIDADES ARTÍSTICAS!
A
UNITED STATES OF LINE CORPORATION
—
O MAIOR PROVEDOR DE INTERNET DO MUNDO —
PRECISA
DE PESSOAS COM O SEU CÉREBRO CRIATIVO!
todos
nós sabemos que os tempos estão difíceis
deixe
o desemprego para trás!
faça
sua entrevista na
e
entre para o nosso quadro
de
servidores!!
Uma garota
passou e perguntou quando ele iria
casar. Jeová sorriu e escondeu o folheto amassado no bolso.
—
Oras! Perguntei algo de mais?
A
moça vestida espalhafatosamente sentou-se
ao lado dele. Tinha a roupa cheia
das letras “I” e “A” prensadas em várias fontes e cores. E no entanto
sua expressão facial
era desencanada e seus olhos, frios. Sem a menor cerimônia ela levantou
a manga da camisa de Jeová e examinou:
—
Pelo menos a velha tatuagem do marinheiro
Popeye está no lugar...
desde aquele dia em que transamos me lembro de sua tatuagem.
Provavelmente a luz vermelha do quarto impediu que você visse a minha
“tatu” do personagem Tetsuo, aquele paranormal maneiro do desenho Akira que
destrói tudo o que vê.
Ela
levantou um pouco a camisa e
mostrou o desenho
de Tetsuo feito sobre o ventre, logo abaixo do umbigo. Jeová deu um gole
na lata gelada de coca-cola:
—
Um paranormal desenhado na
barriga... o poder que vem do ventre... admiro
em você, menina Lúci, esse seu orgulho de ser prostituta.
Ela
passou as mãos nos cabelos.
—
Eu guardo o quadro do barquinho que fez para mim com o maior cuidado, Jeová. É
um acrílico sobre tela muito bonito. É o barquinho do nosso amigo Popeye aí
do seu braço?
—
Talvez – ele disse num suspiro. Eu estou desempregado, minha amiga Lúci.
—
Por que não vira web
design logo de uma vez?
Ele
olhou desesperado para ela:
— E por que as coisas precisam ser assim? Por que todo artista de
uma hora para outra precisa virar web design para sobreviver? Por que eu, que
sempre, sempre fui um idiota idealista,
preciso de uma hora para outra fazer portais na internet para seitas fundamentalistas como todo mundo? Por
que tenho que me vender?
— Não sou sua mãe, cara. Minha tarefa é proporcionar prazer a
pessoas como você. Mas de repente temos um discurso bonito na boca e no bolso
escondemos as trinta moedas de prata de nossa auto-traição.
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(ENTREVISTA)
— Você é um artista, jovem Jeová?
—
Sou.
—
Verdade?
—
Sim. É verdade. Eu sou
um maldito artista.
—
Baseado em quê você
é artista?
—
Baseado no fato que eu crio
e destruo, e às vezes conservo.
— O que você gosta de criar?
—
Mundos. Mundos que podem
ser habitados por outras pessoas. Um livro, uma poesia, uma pintura ou um desenho
são efetivamente mundos que serão habitados pelo olhar, pelo enfoque de outras
pessoas que talvez ainda nem tenham nascido.
—
E o que você gosta de conservar?
— Minha ética. E se quiser saber o que estou prestes a destruir, a resposta é a mesma: minha ética.
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Jeová
estava deitado ao lado da menina-robô prostituta Lúci. Ela o acariciava no braço
da tatuagem:
—
O marinheiro Popeye é capaz de tudo pela Olívia. É um cara legal, Jeová. Pena
que seja viciado em espinafre.
Ele
estava meio distante, olhando para o reboco sujo do pequeno quarto. Mas
concordou:
—
É mesmo, o Popeye é um sujeito bacana. Qualquer dia eu lhe conto a história dessa
minha tatuagem.
Ela
virou a cabeça para Jeová, que achou muito interessante como os olhos dela
ficavam com a tonalidade do mel assim que fazia amor:
—
Tem a ver com uma garota não é? Uma garota que você amou muito e de uma hora
para outra mandou você lamber sabão. Não ligue para isso. Se serve de alento,
se eu não gostasse tanto da
minha liberdade me casaria com você. Eu gosto muito da forma como você me come.
Jeová
riu:
—
Essa é boa! Não vejo nada demais na maneira como faço isso. Além disso, não
é todo dia que estou a fim. Se você pensou em se casar comigo por esse motivo,
é melhor tirar o cavalo da chuva.
—
E quem disse que você transa como um deus? Seu pretensioso! Sequer faz sexo como
uma máquina como eu. Eu gosto porque você faz como um ser humano, que pode
falhar a qualquer momento. Justamente por saber que haveria dias em que você não
estaria a fim, e haveria dias em que você até estaria mas que acabaria não
conseguindo, é que eu me casaria com você, Jeová. Pense que a solução dos seus
problemas passe por esse fato: somos humanos, meu amor! E o efêmero e falho é
o que talvez haja de melhor.
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(ENTREVISTA)
—
Jovem Jeová, se você tivesse concluído sua faculdade de Filosofia agora
estaria lecionando, não é mesmo?
— Eu fiz bem em sair.
Teria me transformado naquilo que eu mais odeio no mundo: num professor.
—
Ah, é verdade que
você odeia professores?
—
Se pudesse, mataria um
por um.
—
E o que você
gostaria de ser quando crescesse?
—
Um astro de rock. Rock
é melhor que filosofia.
—
Por quê?
— Filosofia
quer ser Deus, enquanto que o rock se contenta em ser humano.
—
Mas talvez Deus possa vir algum dia a fazer rock...
Jeová
estranhou:
—
Ei, para um Inteligência Artificial até que você tem umas sugestões
peculiares. Isso o que acabou de dizer me lembrou uma puta chamada Lúci.
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Estavam
sobre o viaduto no qual Lúci Fer fazia seu ponto. A noite estava terrível de
escura por causa de um blecaute. Lá embaixo, a serpente das luzes vermelhas dos
automóveis dava o seu show lento. Lúci se escorou despreocupadamente no
parapeito, o vento noturno balançando
seus cabelos. Jeová retesou o corpo, com medo de se aproximar.
—
Ei, qual é, Jeová? venha para cá.
—
Não posso. Tenho vertigens.
—
E quer melhor motivo para vir até aqui?
—
Eu tenho medo!
Ela
sorriu. Foi para perto dele. O pegou na mão e o trouxe para a beira do viaduto.
Logo o mesmo vento que balançava os cabelos dela passou a acariciar os cabelos
dele, também. mas não era vento. Eram os dedos da menina.
—
Vejam só! O grande artista plástico underground
Jeová com medo de altura! Caso não arranje emprego de web designer
poderá arrumar um de comediante.
Jeová
estava tomado pelo temor. Nem
percebia o carinho que Lúci estava fazendo em seus cabelos.
Olhava para baixo, lááá embaixo onde os automóveis eram apenas pontos
luminosos em meio a escuridão. Ela também olhou para baixo.
—
Amar alguém é mais ou menos assim como esse medo que você está
sentindo agora de cair e esborrachar seu rosto bonito no desconhecido.
—
Do que você tem medo, Lúci? – ele mal conseguiu balbuciar. E sentiu o quanto
os olhos dela ficaram mais frios do que o costume:
— De ficar sozinha. Por isso, Jeová, ouça o meu conselho: não se pode servir a dois senhores. Nunca se esqueça disso.
O
olhar dele para ela era uma interrogação. O vento era uma interrogação.
—
O que quer dizer?
—
Pense a quem quer servir. E o que é se transformar num servidor.
—
Como sabe que eu quero entrar na United States of Line?
Ela
segurou nas mãos dele, numa súplica, numa oração silenciosa. Em seguida saiu
correndo, chorando na escuridão, e ela correndo parecia estar dançando. Dançando
no escuro como uma estrela da manhã. De algum lugar vinha uma música do Dead
Can Dance, e o vento continuou a soprar. O Popeye faria qualquer coisa pela Olívia,
Jeová.
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DO
JOVEM ARTISTA PLÁSTICO
JEOVÁ
METATRON:
FOI
CONSIDERADO APTO
PARA
FAZER PARTE
DA
EQUIPE DE SERVIDORES MÓVEIS
DA
UNITED STATES OF LINE
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Um aparato de segurança nunca antes visto naquelas paragens urbanas
parou a rua para que Jeová pudesse passar. Seguiu a viagem dentro de um veículo
blindado, cercado por seguranças armados com metralhadoras israelenses. Jeová
em meio a metrancas feitas na Terra Santa! Que
maneiro!
— Tudo isso é realmente necessário? Parece até que estou indo preso!
E ele não gostava de se sentir preso ao que quer que fosse. Lúci...
— Toda precaução é pouca, senhor — A voz do que parecia ser o
chefe dos seguranças vinha distante, abafada como se estivesse saindo de uma
caixa por causa da monstruosa máscara verde antigás que o mesmo estava usando.
E por isso mesmo não dava para ver a cara do cara, muito embora fosse o único
que tivesse uma placa de identificação onde estava escrito I. A.
—Precaução contra o quê? E por que? Eu só vou virar um funcionário
como vocês. E não me chame de senhor. Parece aquelas mocinhas que cortam o
nosso barato quando a gente joga um papo furado nelas.
— Correção, senhor – o chefe dos seguranças disse parecendo uma
criatura do espaço com seu equipamento – o senhor não vai virar um funcionário
como nós. Vai é virar um servidor móvel do provedor de internet United States
of Line, conforme o senhor mesmo
assinou nas cláusulas do contrato quando se ofereceu para fazer a entrevista.
— O que diabo você está me dizendo??
— Simples: vão transformar o seu cérebro num servidor.
Antes que Jeová gritasse por socorro, uma coronhada o fez ver estrelas.
Logo em seguida o amarraram num assento cheio de correias.
— Afinal, por que não pegaram qualquer nerd para extrair o cérebro
dele? Conheço maníacos por informática que dariam o próprio cérebro para
algo assim com o maior prazer!
— Momentos atrás o senhor falou algo sobre papo furado. Todo o papo
furado da entrevista à qual o submetemos, senhor Jeová, era para testar o
desenvolvimento de seu cérebro. O motivo pelo qual não pegamos qualquer nerd,
ou qualquer executivo ou qualquer outra
pessoa é que elas geralmente só desenvolvem a parte lógica do cérebro, ou
seja, só o hemisfério esquerdo. Para que o cérebro vire um potente servidor
capaz de conectar dezenas de milhões de pessoas à rede é preciso que
os dois hemisférios estejam igualmente desenvolvidos. O seu perfil é
excelente! Fez filosofia e é artista plástico. Os dois hemisférios lindamente
desenvolvidos.
— Adeus, mamãe – Jeová disse com
indiferença.
— Ei, ei, ei, o que está pensando? Que vamos arrancar seu cérebro?
Ouviram isso, rapazes?
(os outros seguranças riram).
— O pessoal da United States of Line vai é encher o seu crânio com
implantes cerebrais, filho! Nada demais vai acontecer com você. Aliás, se
acontecer algo com seu corpo você de nada servirá para nós. Depois da operação,
nem vai perceber que aconteceu alguma coisa com sua cabeça.
— Como assim? Nem um fio
nem nada?!
— Seu cérebro irá conectar os usuários via satélite. E a conexão
se dará “off-line” em
sua percepção, quer dizer; o senhor nem perceberá que dezenas de milhões de
usuários estão usando o seu cérebro para entrar na rede. Será moleza!
E a única seqüela que o senhor terá que lidar será as centenas de
milhares de dólares que aparecerão em sua conta bancária. E aí nem está
computado a porcentagem de lucros vinda
dos “banners” e outras formas de propaganda. Você terá direito a ganhar
sobre todo o marketing veiculado internamente em seu crânio!
— Parece interessante... mas para onde estamos indo?
— Para a CORTEXPRESS, a empresa terceirizada contratada da U.S. of Line
especializada em transformar o cérebro criativo de artistas, filósofos e
outros boiolas em algo verdadeiramente útil para a sociedade.
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Num galpão asséptico da CORTEXPRESS começaram a passar a máquina zero
na cabeça dos inúmeros “selecionados”. Preso como estava Jeová só podia
mover os olhos. Mas viu entre os selecionados algumas da mentes mais brilhantes
do país. Estavam tão atados e presos em mesas de operação quanto ele. O que
não era a porra do desemprego, pensou de si para si. Parece que vamos parir.
— Estou com medo. Tem certeza de que tudo vai dar certo?
— Relaxe e curta o corte de cabelo grátis – disse
entediosamente o técnico vestido como um mecânico que estava tosando
sem nenhuma piedade as madeixas
dele – além disso, não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos.
Como vamos colocar implantes cerebrais nessa cabeça de ovo sem tirar os
cabelos do caminho? Você deveria ser comediante, 18021976.
— Ei, meu nome é Jeová.
— Faz alguma diferença?
— Na boa: você é legal, doutor. Mas vá para a puta que o pariu!
— Você está atrasado. Eu já fui há muito tempo, 18021976. Aliás eu
acho que sou a própria puta que me pariu. Porém quem vai parir dentro de
poucos minutos é você!
Um ruído cibernético e um conjunto complexo de artefatos de operação
que incluía pequenos braços robóticos e outros instrumentos cirúrgicos começou
a descer lentamente do teto diretamente para cima do corpo de Jeová. Um dos braços
que tinha uma seringa se direcionou para o pescoço dele e lhe aplicou uma
dolorosa anestesia. Os olhos de Jeová começaram a enxergar as coisas como se
elas fossem de gelatina tremida.
— Preste atenção, 18021976. Essa primeira
etapa será muito dolorosa. As lembranças mais amargas que você tem irão
voltar com intensidade redobrada. Mas logo você irá acordar, e passará a
enxergar o mundo de outra maneira. O que de pior você se lembra?
A voz de Jeová já estava entorpecida:
— Conforme eu ... declarei... n .na ficha... deinscrição...d-d –de
inscrição...eu.. já us-usei... substâncias... pr-proibi-d-d...
— Excelente!
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________________\________________5
—
Com mil trovões! Você não estava viajando,
Marinheiro
Popeye?
—
Acertou! E agora, pelas barbas do camarão,
tire
suas patas imundas de minha garota Olívia, antes
que
eu também lhe acerte, Brutus!
—
Socorro, Marinheiro Popeye! Salve-me!
—
Já estou indo, minha querida! Solte-a, Brutus, seu
Bolo-Fofo!
É meu último aviso!
—
Pois venha, nanico, que vou quebrar sua cara!
(POU!
TUM! AI! CRASH! ARGH! NÃO! - E o Bolo-Fofo
foi
parar longe, com brutalidade).
_\_
—
Marinheiro Popeye-Jeová, você salvou minha vida!
—
É o meu herói!
Mas...
você está tão diferente...
—
Olhe para mim, minha querida. Estou muito
mais
forte, mais rápido, mais inteligente e
mais
bonito do que antes.
—
É verdade!
—
Antes eu era <medroso e aterrorizado>, e
por
causa disso eu a perdi para o Bolo-Fofo.
Querida,
não sabe como eu sofri por sua causa.
—
Marinheiro Jeová...
—
Soube que vocês tiveram um filho, o G..
Querida,
como pôde?!...
—
Marinheiro...
—
Quando soube disso, fui para o fundo do poço.
Mas
lá achei algo que acabou com minha fraqueza,
e
que me deu forças diante do perigo.
Eu
ingeri esse estranho espinafre da lata!
—
Mas por onde você tem andado, Jeová?
—
Pelas veredas cósmicas. Tenho visto muita
coisa
interessante; hoje, por exemplo,
Marte
está em Escorpião. Quer ir ver as luas
de
Marte comigo? Elas se chamam <Fobos e Deimos>.
—
Marinheiro Jeová, você é super!
E
após ela ter se abraçado a ele, Marinheiro Jeová voou
por
um céu cor de rosa-chá, em direção a Marte.
Mas
tudo foi escurecendo, escurecendo, escurecendo,
e
já não sentia mais o corpo de sua bem-amada junto
ao
seu; tão somente ouvia sua voz ao longe, cada
vez
mais distante no tempo. Chegou então nas duas luas
de
Marte, mas aí tudo ficou negro de uma vez e as luas
se
transformaram nos seus olhos que parados
de
uma maneira sinistra fitavam o vazio daquele
quarto
escuro e abafado. Era dia ou noite? De que mês?
Há
quanto tempo sua pobre carcaça de 25 anos estava
atirada
ao chão? Provavelmente desde que soubera que
sua
namorada o havia trocado por alguém muito mais forte,
bonito
e mais cheio da grana
Amava
essa menina com o amor
mais
sinceramente estúpido
que
alguém poderia devotar a alguém.
E
daí? Daí que para
esquecer
de si e do resto, resolvera viajar.
Sabe
como?
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Lá fora vinha o barulho de chuva e trovões. Jeová se sentou lentamente
na mesa de operações com uma terrível dor de cabeça. Os clarões dos relâmpagos
iluminavam o galpão de luzes apagadas. Era manhã ou estava anoitecendo? Sentia
calor. Muito calor. Foi até uma das janelas, onde a chuva fustigava as
cortinas, e deixou que ela molhasse seu peito e cabeça. Sorveu o perfume de
mato molhado com os olhos fechados, e sentiu as gotas de chuva começarem a
escorrer pelos cabelos. Estranho! Quanto tempo havia ficado inconsciente? Seus
cabelos já haviam crescido! Olhou para trás: era realmente o único por ali.
Sentia-se muito bem. Aliás nunca se sentira tão bem assim! Num ímpeto
acabou pulando a janela e saiu correndo em meio à chuva dum céu tão estranho
que era impossível de precisar se era alvorecer ou anoitecer.
Ele saiu correndo pela luz fugidia. Estava estranhamente feliz,
alucinadamente feliz. Abriu a boca para a meia-luz do céu e sentiu a chuva
entrar pura em sua boca. Parecia que o mundo havia sido feito sob medida para
ele. Talvez fosse a água da tempestade em seu corpo:
— Que vontade de trepar...
O vulto de uma garota apareceu contornado ao longe pela chuva. Vinha
rapidamente em sua direção. Jeová tirou a água dos olhos
com a palma da mão e notou o quanto a garota era parecida com a sua
ex-namorada, a menina que mais amara até então. Chegou a querer perguntar se
era ela mesma, mas logo percebeu que essa garota
era muito mais gostosa que sua ex-namorada! Seu sangue ferveu e gelou
quando ela parou em sua frente e falou:
— Por favor, me foda.
Jeová estava tão alucinado de desejo que nem se importou de fazer ali
mesmo no meio da calçada tomada pela chuva torrencial. Delicioso! E estranho! A
garota levantou a mini-saia e ficou de quatro empinando a bunda para ser
penetrada –
jamais ele havia comido bundas de garotas antes, apesar de sentir muita
vontade de fazer isso. Mas chapado como estava Jeová não quis saber de nada e
mandou ver três vezes antes que se desse por satisfeito (enquanto fazia a
garota não parava de gemer: “Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus”). Depois ele
caiu para um lado da calçada completamente exausto e feliz. A garota se
levantou, com a bunda coberta por porra:
— Obrigado, Deus, pela benção!
Ele , sem fôlego, riu para ela:
— Não, garota, não... eu não sou Deus. Apesar de me chamar Jeová...
A garota foi embora como se nada tivesse acontecido. Ele
a acompanhou com o olhar até que ela desaparecesse tão misteriosamente
quanto surgiu.
— Que coisa mais estranha. Não que eu esteja reclamando disso, mas...
Ficou ali estirado na calçada por um bom tempo. Como se as pessoas soubessem que ele queria ficar descansando sozinho, não passou ninguém na calçada e nenhum carro passou na avenida. A chuva estava boa, mas Jeová começou a se encher de ficar molhado. Imediatamente a chuva parou.
— Porra, tudo está dando tão certo para mim que bem que poderia estar
anoitecendo! Não estou com saco para o horário de rush.
Começou a anoitecer na cidade. Um
belo anoitecer.
Jeová se lembrou que não
havia um “puto” consigo. De qualquer forma, checou os bolsos da camisa preta
de mangas longas (ei! Essa era a minha camisa favorita! não me lembro de tê-la
vestido) e encontrou um cartão de crédito novinho onde havia um logotipo:
CORTEXPRESS CARD. Logo na esquina miraculosamente tinha um caixa eletrônico 24
horas. Ele foi até lá e colocou o cartão. Na tela apareceu a seguinte
mensagem:
VOCÊ
TEM CEM MIL DÓLARES
DE
SALDO
Ele engoliu a
seco. Tirou um maço de notas novinhas.
— Merda! Imagina o estrago que eu vou fazer na Galeria do Rock
com essa grana!
Jeová começou a caminhar deslumbrado rumo à Galeria do Rock. O mundo
estava lhe sorrindo! Tudo era do jeito que sempre quis que fosse!
Estava descendo a Consolação quando passou ao lado do cemitério.
Murmurou entre sorrisinhos:
— Para minha felicidade ser completa queria que tudo o que eu detesto,
como todos os meus professores, estivessem aí dentro bem mortos! E que as
pessoas legais do mundo nunca tivessem morrido!
Nisso o muro do cemitério desabou e ele pôde ver as centenas de novas lápides: o nome de cada um de seus professores estava lá, escrito em letras góticas luminosas. Mas não só isso! Todas as pessoas idiotas, como por exemplo aquele nerd norte-americano que tinha bilhões de dólares e que era dono do maior monopólio de softwares do mundo estava no cemitério num túmulo sem graça como todos os outros. Lá também estavam todos os responsáveis pela televisão nacional ser um lixo, inclusive aqueles dois apresentadores de auditório do domingo que se rivalizavam em baixarias. eles estavam mortos ao lado da tumba dos respectivos donos dessas emissoras. Mas não era só isso! Aquele bispo idiota que tinha um canal de televisão estava sepultado numa vala comum com todos os milhares de pókemons (sobre esse túmulo coletivo não havia sido colocado nem terra, apenas uma camada de lama que não impedia os abutres de devorarem a carcaça colorida dos monstrinhos, que lhe pareciam mais saborosa que a carcaça do bispo). Além disso, todos os políticos, todos os oportunistas como aquele padre idiota, todos os filhos da puta como os cantores dessa nova geração de MPB que fazem aquela música irritante para a classe média do caralho que escuta essa porcaria dentro daqueles carros populares 1.0 de cores imbecis também estavam lindamente mortos! Os carros também estavam sepultados, assim como aqueles cachorrinhos poodles que sempre vão no banco da frente.
— Esse é o dia mais feliz da minha vida! – Disse Jeová, exultante.
Um carango maravilhoso, desses feitos na década de 70, passou lentamente ao
lado dele. Jeová estava abençoando aquele esplêndido ronco do motor V-8
quando viu boquiaberto que o motorista era o Joey Ramone!!
Joey pôs a cabeça do lado de fora do carango e comentou:
— Ainda bem que eu não fui enterrado nesse cemitério de animais...
E se mandou. Jeová estava paralisado de felicidade! Só Deus sabe como
estava feliz.
Continuou a descer a Consolação. De repente Jeová se sentiu só, e por
isso desejou um amigo para conversar. Num barzinho adiante viu um vulto numa
mesa do lado de fora, iluminado por uma luz amarela. Parecia estar jogando
cartas. Ele se aproximou. O vulto estava envolto num manto escuro como o que a
Morte costuma usar. Jeová se aproximou: era Josiel, o cartomante!
— Josiel, você por aqui!
Josiel levantou o capuz sombrio e sorriu:
— Deus! que surpresa! Que bom que o senhor veio! Puxe uma cadeira.
— Josiel, o mundo está muito esquisito! Sabe que eu acabei de falar
com o Joey Ramone?
— Grande coisa!... quem estava sentado nessa cadeira ainda a
pouco era o Ian Curtis do Joy Division. Caso não saiba, ele se enforcou
no dia 18 de maio de 1980 – Josiel comentou
enquanto embaralhava o maço do tarô. Curioso que das cadeiras ao redor de
minha mesa o Senhor tenha escolhido justamente a cadeira de um suicida, senhor
Deus. Quando eu flertei com o satanismo, em 1995, eu fiz uma poesia sobre o suicídio
de Deus. Mas hoje eu sou apenas um humilde cartomante.
— E sabe do que mais? Eu acabei de foder uma garota que nunca vi antes!
E tenho cem mil dólares! Parece que tudo o que eu desejo está acontecendo!
— É, acho que ser Deus deve ser legal – Josiel disse enquanto
dispunha as cartas sobre a mesa – puxe uma carta, senhor Deus.
— Droga, Josiel, vá se foder! Meu nome é Jeová – ele resmungou de
mau-humor e puxou uma das lâminas – não sabia que gostava de beber, Josiel.
E essa garrafa de vinho aí?
— Bebo à saúde de Nietzsche, aquele cara que mandou o Senhor lamber
sabão. Sabe de uma coisa, Deus? há muito preciso dizer algumas coisas que estão
entaladas na minha garganta para Você. Do mesmo modo que eu embaralhei esse maço
de tarô, Você embaralha nossas vidas como se fôssemos não instrumentos de
Sua vontade, mas meros brinquedos de Seu capricho! Sabe muito bem
que estou me referindo ao dia 19 de fevereiro de 2000. Deus, por que
aquilo teve que acontecer? Ninguém teve culpa e tudo aconteceu como se fosse um
desastre sem sentido, e o mal estar resultante fez com que eu sequer tivesse
coragem para olhar e pedir perdão. Escrever certo por linhas tortas? Besteira!
No fim só há o caos e a entropia nascendo no horizonte!
— O que anda fazendo de interessante, Josiel?
— Estou escrevendo um texto porra-louca chamado DEUS EST MACHINA.
— Quando terminar, eu posso ler?
— É melhor não, disse Josiel, rindo enigmaticamente. Você teria um
ataque se soubesse do enredo, Deus! Mas vamos à carta que tirou: olha, é o
arcano 16, a “Casa de Deus”.
— Hum, é bom ou mau?
— Ei, Deus, já ouviu a expressão “A casa caiu para você,
mano!”? Esse arcano é bem isso! A Casa de Deus é o Templo. E o templo é o
seu corpo, o lugar habitado por sua alma. É a torre de Babel, fulminada por um
raio divino, para que os idiotas que estão dentro larguem essa vida de crente e
vão viver de verdade suas vidas, afinal o “viver sua vida” é a melhor
religião que pode existir, mas os idiotas que lotam as igrejas não percebem
isso, como não percebem os malditos internautas que passam a maior parte de sua
vida nessa maldita nova religião chamada Internet navegando na mente distorcida
de um novo Deus, (você, cara!) enquanto que a vida em todo o seu esplendor está
fora da igreja e fora da internet. Enfim, um belo dia a igreja explode e a
internet sai do ar e os idiotas são obrigados a saírem de sua egocêntrica “Torre de Marfim” (vê-se logo que não há
muita diferença entre um beato e um intelectual). Bom, é isso que vai
acontecer com o Senhor Deus: sua mente vai sair do ar.
— Vai cair um raio na minha cabeça?
— Talvez. Mas o arcano 16 também é relacionado com o signo de áries,
o carneiro, então é mais provável
que um bode dê uma cabeçada em sua Torre de Marfim, Deus.
— Esse papo está cada vez mais psicodélico, Josiel. Que bode?
— Um bode maneiro chamado Lúcifer. Ela vai mostrar algumas coisinhas
para o senhor, Deus. Agora me dê licença, pois eu preciso dar conselhos para
um cara chamado Med Ezenos. E por falar em conselhos,
eu vou lhe dar um: cuidado com o toque de Midas, Deus.
E então Josiel virou seu manto e se transformou em SATOR, o demônio-lobisomem
de crista punk do livro THE BOX MAN.
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(
A DIVINA COMÉDIA)
E as coisas do mundo passaram a acontecer de acordou com a vontade de
Jeová. O clima, as bandas, a política, as garotas, tudo se comportava de
acordo com os desejos dele, que feliz por ser o Deus de um universo inteiro, nem
se lembrava mais da puta Lúci. E achando que os outros é que estavam servindo
a ele, se esquecia quem verdadeiramente estava servindo a quem .
E foi justamente por isso que num dia negro os jornais começaram a
mostrar negras notícias de um mal que estava surgindo no mundo de Jeová. Os
mais religiosos chamavam esse mal de “Lúcifer”. O mal aparecia e
desaparecia quando menos se esperava, semeando a discórdia e a
falta de fé em Deus.
A princípio indiferente, logo numa manhã Jeová olhou a estrela
d’alva e sentiu desejo de conhecer o mal. A estrela da manhã, a bela Vênus,
logo lhe atendeu.
Foi só sentir o desejo e o mal apareceu gigantesco entre nuvens de
energia que pulverizaram prédios do centro. Jeová foi ofuscado pelo fulgor da
estrela da manhã, o livro de esplendores em sua frente recitou o belo poema
chamado Lúci Fer, a sua amiga puta-robô. Lá estava ela, só que tinha uns 20
metros altura. Pelada, com a tatuagem do Testsuo mais colorida que nunca embaixo
do umbigo. A tatuagem tinha a estatura de uma pessoa adulta.
— Jeová, meu amor, você se vendeu como um lixo, e está morto!
Logo o exército apareceu, e começou a metralhá-la como se Lúci Fer
fosse um monstro. Em troca ela começou a destroçar os soldados e os prédios
foram cobertos por pedaços de corpos esmagados pela mulher gigantesca. Jeová
olhava boquiaberto para ela.
— Por que diz que eu me vendi, Lúci?
— Você virou um servidor! – ela disse após chutar um jipe como se
fosse uma caixa de sapatos.
— E o que isso tem demais? eu apenas coloquei uns implantes em meu cérebro.
Eu nem sinto os usuários de internet usando minha mente. Além disso,
todas as coisas que eu quero acontecem!
— Elas acontecem porque esse mundo foi criado por você, artista Jeová!
Todo esse universo é uma fantasia dentro de seu cérebro! – Lúci falou após
arrancar um poste e com ele dar uma porrada num helicóptero militar que lhe
metralhava. O helicóptero partiu no meio e pegou fogo.
— O que você está me dizendo, sua putinha andróide? – Jeová
gritou estarrecido.
Após esmagar um general como se fosse uma barata, Lúci Fer respirou
fundo e falou:
— Sabe o que realmente aconteceu com você, Jeová? Você acreditou na
conversa de quem lhe comprou! Esqueça a bela história de implantes cerebrais
que colocaram em sua cabeça. A realidade é essa: após ter ido à CORTEXPRESS
você foi operado. Tiraram o seu cérebro e o transformaram numa máquina de
acesso rápido à internet! O seu corpo foi retalhado. O que deu para servir
para transplantes foi aproveitado e vendido, e o resto do corpo foi incinerado
como lixo! Você virou um maldito servidor de internet, Jeová! Todo esse
universo onde você reina como um deus é apenas uma prisão que ocupa uma
porcentagem ínfima de sua memória e serve apenas para mantê-lo anestesiado.
Embora você não possa perceber, a maior parte da sua capacidade cerebral foi aproveitada pela
United States of Line para proporcionar à classe média acesso rápido à sites
de pedofilia, racismo e intolerância religiosa. Não sabe o trabalho que me deu
para poder entrar em contato direto com sua consciência, Jeová, pois tudo aqui
está morto para contatos exteriores; esses filhos da mãe da CORTEXPRESS
fizeram mesmo um bom trabalho. Eu tive que usar toda a minha Inteligência
Artificial para achar a conexão certa do seu cérebro entre as dezenas de
outros que estão armazenados em contâiners orgânicos no subterrâneo de uma
das filiais da U.S. of Line. E ao fazer isso eu decretei o meu fim, pois o meu
corpo real está conectado num telefone público no centro velho da cidade,
completamente inerte, e logo a U.S. of Line vai detectar a violação de acesso
e achar o orelhão. Meu corpo indefeso vai ser desligado como uma boneca sem
pilha. Mas sabe por que uma andróide prostituta como eu está fazendo tudo
isso? Por que eu te amo Jeová! Nós dois já estamos condenados, meu amor!
Jeová sentou-se no pé da projeção virtual de Lúci, completamente
arrasado. Depois de um tempo olhou para cima, para ela:
— Não. Não estamos condenados. Um paranormal desenhado na barriga... o poder que vem do ventre... Vamos criar um universo, Lúci Fer.
Jeová se ergueu. A menina sabia o que fazer. O pegou com uma das mãos
gigantes e o introduziu inteiro dentro de sua vagina.
Jeová passou a ser um disquete a ser lido pelo processador de Lúci, que
teve acesso a todos os dados dos cérebros-servidores da CORTEXPRESS, e uma vez
com acesso livre a todos eles a menina robô pariu um devastador vírus que
desligou todos os cérebros. Desligados, os cérebros morreram e apodreceram.
A internet caiu. Dezenas de milhões de internautas ficaram desesperados:
nada de sites, nada de e-mails, nada de chats.
E então foram para suas janelas e viram como o Sol estava bonito.
(mas
no princípio criou Deus os céus e a terra)
Josiel
http://signica.vila.bol.com.br